Jornalista, escritor, editor, consultor cultural e empresarial.

 

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Na Cultura

todo investimento é lucro.

 

Para você e

 para o País.

 

 

Alguns das centenas de artigos de Marcelo Câmara

publicados, a partir de 2007, em diversos veículos do País,

estão nesta página.

 

Porém, também, no BLOG DO MARCELO CÂMARA, a partir do primeiro texto

postado a 26.10.2016, que pode ser lido clicando-se AQUI ,

 

o internauta irá encontrar dezenas de textos críticos sobre a Cultura e a Realidade Brasileira.

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HÁ 130 ANOS NASCIA EM ANGRA DOS REIS

UM DOS MAIORES CIENTISTAS DO MUNDO

Marcelo Câmara *

 

Se nos apoiarmos na História, na Geografia Social, na Língua e na Linguística, podemos afirmar que o etnônimo, o gentílico “carioca” (karaiwa, homem branco+oka, casa=casa do homem branco) é uma espécie do gênero “fluminense” (do latim, flumen, fluminis=rio). A palavra registrada pelos jesuítas no Século XVI, no início do Oitocentos era um pejorativo. E “fluminense” era tudo relativo ao Rio de Janeiro, à Velha Província, ao Estado e à Cidade, à capital da Colônia, do Vice-Reinado, do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves, do Império e até da República. Mas, com a criação do fictício e efêmero Estado da Guanabara, a palavra “carioca” renasceu e se fortificou. E, a partir de 1975, mesmo com a Cidade do Rio de Janeiro vindo a ser a capital do real e eterno Estado do Rio de Janeiro, os seus naturais e habitantes passaram a rejeitar o substantivo e adjetivo “fluminense”, se distinguem dos seus coestaduanos, se autoproclamando “cariocas”.

 

Assim, desconsiderados os cariocas, uma rápida viagem pela História da Cultura do Estado do Rio de Janeiro, é certo, justo e pacífico, consagrar LAURO Pereira TRAVASSOS, indubitavelmente, como “O maior cientista fluminense” e “Um dos maiores cientistas do mundo”. Médico, pesquisador, professor, biólogo, zoólogo, helmintologista, entomologista, nasceu de família tradicional angrense, na roça, na Fazenda Japuíba, na localidade do mesmo nome, próxima à sede do Município, a 2 de julho de 1890. A Família Travassos, vinda de Portugal, estabeleceu-se, inicialmente, na Ilha Grande, mudando-se no Século XIX para o litoral. Filho de João de Mattos Travassos e Laura Pereira Travassos, Lauro casou-se, com Odette, com quem teve quatro filhos, entre eles, dois médicos e grandes ictiologistas: Lauro Travassos Filho e Haroldo Travassos, autores de centenas de trabalhos sobre os peixes dos nossos mares e rios, com pesquisas, ensaios, teses e artigos de referência internacional.

 

Pouco se sabe do aprendizado das primeiras letras de Lauro Travassos. Apenas que, antes de ingressar na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, estudou no Colégio Alfredo Gomes, no Largo dos Leões, Humaitá, no Rio. Formou-se médico em 1913, defendendo a tese Sobre as espécies brasileiras da subfamília heteraminae, trabalho da área de Zoologia, especificamente da Helmintologia (ramo que estuda os vermes em geral, especialmente os parasitas), a que vai se dedicar, prioritariamente, por toda a vida. Naquele ano, já existia Manguinhos, a Pesquisa se iniciava, heroica e precariamente, no Brasil, e ele publica os seus três primeiros trabalhos, que estão nas Memórias do Instituto Oswaldo Cruz. O primeiro, sob a orientação e em colaboração com Gomes de Faria, de quem foi estagiário no Laboratório que tinha o nome do grande pesquisador na Faculdade Nacional de Medicina, uma monografia sobre Ancilostomídeos, parasitos do intestino do homem causadores da Ancilostomíase; e outros dois, sozinho. Aí se inaugura a Escola Brasileira de Helmintologia, forma-se uma corrente científica, hoje viva e trilhada em todo o mundo. Foi o que fez durante toda a vida: estudar, pesquisar, ser vanguarda, formar talentos, fazer escola. E o fez, formou discípulos.

 

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                                                                                 Instituto Oswaldo Cruz)                                  (Foto: FioCruz)                                    (Foto: FioCruz)                                     (Foto : FioCruz)                                                 (Fotos: Casa de Oswaldo Cruz)

 

Travassos, também, inicia a sua imensa contribuição para o conhecimento da fauna helmintológica brasileira e a formação da centenária Coleção Helmintológica do Instituto Oswaldo Cruz – IOC, a mais importante do mundo, da qual ele é o principal organizador. Ele é o maior responsável por esse imenso patrimônio, graças às suas excursões científicas realizadas por todo o País, de grande repercussão no meio científico e acadêmico, e, também, ao intenso e constante intercâmbio nacional e internacional com cientistas e instituições de todo o mundo. Mas, antes, em 1912, ainda  acadêmico, integrou a comissão que investigou as epizootias (doenças contagiosas em animais) que vitimavam rebanhos na região de Botucatu, SP.

 

Em Manguinhos, Travassos viveu, estudou, pesquisou, descobriu, trabalhou a maior parte da sua vida. Ali fez o Curso de Aplicação do IOC e foi trabalhar, novamente, com Gomes de Faria, no Laboratório de Helmintologia. Iniciou, efetivamente, o seu percurso científico com a participação no combate à febre amarela no Rio de Janeiro e em Belém, PA. Foi valioso auxiliar de Oswaldo Cruz, de quem foi discípulo e amigo.

 

Em 1915, estava em Minas Gerais acompanhando os trabalhos da Fundação Rockfeller de controle da Ancilostomose. Em 1926, assumiu a cátedra de Parasitologia da Faculdade de Medicina de São Paulo, onde revolucionou o Ensino com o desenvolvimento de trabalhos práticos, dando-lhes mais objetividade. Com isto, as vocações para a Ciência são estimuladas. Na década de 1930, ingressa como catedrático na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. Foi, ainda, professor da Escola de Veterinária, mas em virtude de uma lei que proibia a acumulação de cargos públicos, optou pela pesquisa em Manguinhos. Uma das mais importantes revoluções educacionais havidas no País foi o trabalho de Anísio Teixeira à frente da Universidade do Distrito Federal – UDF, que, nela, criou os cursos de Ciência. Lauro Travassos assumiu a cátedra de Zoologia, tendo como Assistente Herman Lent. Mesmo por um período curto, a experiência foi significativa para Travassos.

 

Lauro Travassos foi uma vocação, um operário, um gênio da Ciência. Manguinhos foi a sua casa, a sua pátria, o seu universo para a experiência, a descoberta, o estudo, os ensaios, a evidência, a definição, o conceito científico. Ali, um laboratório pobre, singelo, de poucos recursos. Os seus contemporâneos lembram apenas de um microscópio para vários pesquisadores. Porém havia um amor, uma paixão, um ardor contagiante, uma disposição mútua para o trabalho, uma empatia com o conhecimento. Muito trabalho, confiança, alegria. As deficiências eram suplantadas pela vontade, a improvisação, a criatividade, o entusiasmo. Enfim, a precariedade, a falta de apoio, a deficiência, a ausência de recursos, sempre foram os desafios dos cientistas, como o são até hoje.

 

O pesquisador Luiz Fernando Ferreira, ex-Presidente da FioCruz, em uma palestra magistral sobre Lauro Travassos de 1989, lembra a frase que está no Ex-libris de Oswaldo Cruz: "Fé eterna na ciência". Entre os discípulos de Cruz, assinala Ferreira, havia os aristocratas, bem vestidos; e os plebeus, terno de brim amassado, “os franciscanos da Ciência”. Entre estes últimos, estava Lauro Travassos, “...muitas vezes a camisa queimada pelo cigarro da marca Distintos, um mata-ratos, que ninguém filava”.

 

Lauro Travassos é autor de uma obra monumental, 440 trabalhos publicados no Brasil e no exterior, dos quais, 181 nas áreas da Helmintologia e Entomologia, todos em português e vertidos para várias línguas. Em seus trabalhos de campo e de laboratório, Travassos descobriu e descreveu centenas de espécies novas e, por isto, é o pesquisador brasileiro, nesse campo, mais conhecido no exterior. Em 1929 a convite de Fülleborn, o grande helmintologista alemão, vai para o Tropeninstitut, em Hamburgo, Alemanha. Embora monoglota, falando somente português, todos queriam conhecer o grande mestre, dele se aproximar, conversar com ele. O cientista Skrjabin, ícone da Academia de Ciências de Moscou, irmão de Molotov, afirmou: “Lauro Travassos é o maior helmintologista do mundo".

 

Existe, no mundo, a escola brasileira de Helmintologia. É a Escola Brasileira, a Escola Travassos. Como existem outras no universo da Helmintologia: Szidat na Alemanha; Dolffus da França; Skrjabin na Rússia; Stiles e Hassal, Stumkard dos E U A; Cabalero do México; Yamaguti do Japão. Travassos também se notabilizou, mundialmente, na Entomologia (estudo dos insetos), onde abriu caminhos, fez escola. Luiz Ferreira sintetiza a sua personalidade: “Era um homem simples. Não queria cargos. Não lhe acrescentaria nada a vaidade. O seu prestígio era de chefe de escola. Ele era, não estava”. Hugo Souza Lopes registra: “Quando Travassos se casou, Oswaldo Cruz o chamou e disse: — Você se casou não é? Então precisa ganhar um pouco mais".

 

Foi Membro da Academia Brasileira de Ciências e Correspondente do Museu Histórico Nacional, do The Helminthological Society of Washington e do The Zoological Society of London. Recebeu o Prix D'esportes da Academia de Medicina de Paris em 1944, e o Prêmio Alfred Jurykowski, da Academia Nacional de Medicina. Deixou um livro fundamental aos que desejam se iniciar na especialidade: Introdução ao Estudo da Helmintologia.

Faleceu a 20 de novembro de 1970, aos oitenta anos, no Hospital Evandro Chagas. Pobre, humilde e imenso, como os homens de gênio e os verdadeiros sábios. A Assembleia Legislativa aprovou, a 21 do mês seguinte, Moção de Profundo Pesar, de autoria do Deputado Câmara Torres, pelo seu falecimento. O Parlamentar apresentou à Família, “as homenagens da Casa a quem foi tão digno da Ciência e da Pátria.” Duas escolas públicas, uma no Rio, outra em Angra dos Reis, homenageiam a sua memória.

 

(*) MARCELO Nóbrega da CÂMARA Torres (Angra dos Reis, 1950)

Jornalista, escritor, editor, consultor empresarial e cultural.

Membro da Academia Fluminense de Letras

e do Ateneu Angrense de Letras e Artes.,

 

Publicado em O Eco - o jornal da Ilha Grande,

edição 255, de agosto de 2020

e em A Tribuna, de Niterói, RJ,

edição de 19, 20 e 21.12.2020 

 

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“DIVULGAR QUE
A CAIPIRINHA NASCEU EM PARATY
É TOLICE, FANTASIA, INVERDADE, EMBUSTE”,
AFIRMA ESPECIALISTA.

Essa falsa informação histórica

habita a mídia desde janeiro de 2014

 

CAIPIRINHA E UMA BATIDA CHAMADA RUCU-RUCU


A ELABORAÇÃO DE UMA BOA BATIDA

– FILHA FIDALGA DA CACHAÇA –
É TODA UMA ARTE CHEIA DE SUTILEZAS
.”


(GILBERTO FREYRE IN CACHAÇA – 114 RECEITAS DE BATIDAS, 1976)

 

 

Várias vezes me perguntaram quando, como e onde nasceu a Caipirinha, quando surgiram as batidas de frutas que têm como base a Cachaça. Ou quem inventou a batida de limão. Um pingófilo amigo sempre repetia quando um problema o ameaçava: “Como dizia Napoleão, a solução é batida de limão”. Eu acredito que tanto a Caipirinha quanto as batidas de Cachaça com frutas surgiram logo depois de a Cachaça nascer em plena Mata Atlântica, no litoral norte de São Paulo, no início do século XVI. Os primeiros provadores e bebedores do “vinho de mel de cana” em São Vicente tinham, em seu redor, exuberantes, dezenas de espécies de frutas tropicais, perfeitas para a mistura com a aguardente, mel ou açúcar. A experiência da mistura foi natural. Esta é uma dedução histórica natural, aplicando-se a Lógica à História.

 

A referência mais antiga que encontrei sobre o assunto é recente. O guarda-marinha inglês Edward Wilberforce, embarcado no navio Geyser, da Marinha Real Inglesa, que tinha por objetivo o combate ao tráfico, é o autor do livro Brazil Viewed Through a Naval Glass: With Notes on Slavery and The Slave Trade (O Brasil visto por uma luneta naval: com notas sobre a escravidão e o tráfico de escravos). O texto foi finalizado em outubro de 1855. O livro, editado em Londres no ano seguinte. O Geyser patrulhou a costa brasileira de 1851 a 1855. Wilberfoce reserva um capítulo inteiro da sua obra para narrar a alegria da tripulação quando teve permissão para ir a terra, na Praia das Laranjeiras, no litoral sul de Paraty. E que alegria era essa? Por que a tripulação exultou em descer na Laranjeiras?

Pela narrativa detalhada do Wilberforce, a tripulação, incluindo os oficiais, num dia entre fevereiro e março de 1851, refresca-se, refestela-se, com muita agitação, alvoroço até, ao ir a terra chupar laranjas e beber grog. Beber grog significa beber aguardente misturada à água, ao limão e ao açúcar. “Grog” também pode ser traduzido como qualquer bebida forte, qualquer destilado, puro com água e limão, com ou sem açúcar; o rum puro ou o rum com água e limão, com ou sem açúcar. Mas é inimaginável que na Praia das Laranjeiras, em Paraty, a tripulação de Wilberforce tenha descido a terra para beber rum com água e limão, com ou sem açúcar. A aguardente nativa e existente naquela praia, a “Baía das Laranjeiras”, “Orange Bay”, como Wilberforce chama aquele sítio, é a famosa “paraty”, aguardente de cana-de-açúcar superior, feita na região, que, dois séculos antes, já era distinta, melhor e mais cara do que todas as “aguardentes da terra” ou “jeribitas”, fabricadas e de uso generalizado em todos os cantos da Colônia, depois Vice-Reino e, à época, Império do Brasil. Beber grog, ou seja, paraty misturada com água, limão, com ou sem açúcar, é o que Wilberforce descreve efusivamente em sua obra, num cenário tropical, de natureza exuberante, onde flora, fauna, geografia fascinante, tudo era novidade, prazer e êxtase. O Geyser havia deixado a Londres urbana e fria em novembro de 1850, antes do terrível inverno.

 

Edward Wilberforce capitão foto.jpg

Capitão Edward Wilberforce (1834-1914), da Marinha Real

Britânica, foi poeta, romancista, tradutor, advogado,

e se tornou Juiz da Suprema Corte em 1899.

(Foto: Imperial War Museums - Acervo Marcelo Câmara)

 

 

A tripulação bebeu bastante, a alegria foi contagiante e generalizada. Wilberforce descreve o excesso etílico de um tripulante, bêbado, que, após beber e fumar, tenta se explicar ao capitão: “I wasn’t drunk, sir, not by no means. I was just kinder stupefied, sir, not by drink at all. I’ll just tell ye how it was. I had one glass, or it may be two glasses, or it might be three glasses, sir, o’ porter, and one glass o’ grog, which wasn’t nothing like enough to make me drunk, sir!”.


Portanto, aí está a confissão de um tripulante que bebeu vários copos de grog. Trata-se do primeiro registro bibliográfico, pelo menos que eu conheça, do consumo da mistura Cachaça + água + limão + açúcar, feito no Brasil. Este é o primeiro registro de uma mistura que mais se aproxima do que iríamos chamar, a partir do século XX, de Caipirinha, o drinque brasileiro por excelência.

Mas nem por isso eu cometeria a leviandade de afirmar que a Caipirinha nasceu na Praia das Laranjeiras, em Paraty, em 1851. A Caipirinha, as batidas em todos os cantos do Brasil, os bate-bates nordestinos de Cachaça com frutas, são soluções, como disse acima, segundo a minha dedução, de que tais misturas nasceram, naturalmente, contemporâneas à própria Cachaça, na Mata Atlântica, na Capitania de São Vicente, no século XVI. Depois, se repetiram e se multiplicaram em todas as terras de consumo, nos arredores de todos os engenhos da Colônia, nos arraiais, freguesias, aldeias, vilas e cidades. Muito mais, é claro, como busca de prazer, de sair da realidade, e de animar festas, “esquentar” reunião, diversão ou lazer; e, muito menos, o uso da Cachaça com finalidade medicinal, de cura, o que também era usual.


O registro de uma prática, de uma receita de bebida ou comida, do consumo de uma bebida misturada a alguma fruta com açúcar; ou o registro de um fato, em documento, jornal ou livro, ocorrido em determinado lugar, em certa data, não autoriza ao registrador ou ao leitor daquele registro afirmar que a prática que descreve se deu, naquele lugar, naquela data, pela primeira vez. Não permite ao historiador enunciar que aquela bebida, que aquela receita, nasceu naquele lugar ou naquela data. Um erro grosseiro, inconcebível ao mais incipiente pesquisador. Seria como um historiador que registra, pela primeira vez, uma prática gastronômica, um prato, ou a uma confecção artesanal de um objeto, em determinado lugar, numa determinada data, assegurar que aquela prática nasceu naquele lugar e naquela data, onde e quando ele, circunstancialmente, registrou.

Um primeiro registro de um fato por uma pessoa não pode ser confundido com a sua primeira ocorrência, como se o fato ele acontecesse pela primeira vez, constituindo-se um fato inédito.

Nesse equívoco, incorreu quem, certamente néscio em Cachaça e na sua História, ao encontrar nos Arquivos da Câmara Municipal de Paraty um documento de 1856, no qual o engenheiro civil João Pinto Gomes Lamego, respondendo a um ofício do presidente da Câmara do município, justificava o destino que dera ao volume de aguardente a uma “feria” de trabalhadores, erra ferozmente. O engenheiro explica que serviu “aguardente temperada com água, açúcar e limão”, em substituição à água, aos trabalhadores que labutavam na obra de um cemitério, lugar que considerava insalubre. Segundo o engenheiro, fez isso para evitar que os trabalhadores, “suados do trabalho” poderiam “sofrer algum outro mal”, além da cólera que grassava naquela quadra na cidade, pois a água era o principal veículo transmissor da doença. Após ler a justificativa de Lamego, concluiu-se que “a Caipirinha nasceu em Paraty”.

Ora, em primeiro lugar, a receita do engenheiro de Paraty não era uma receita de Caipirinha, como desde o início do século XX é denominado o drinque que consiste em macerar o limão com casca em pedaços com a Cachaça, obtendo-se o suco e o sumo da fruta, adicionando-se açúcar, permanecidos os despojos da fruta no fundo do copo. Não há essa descrição no “Officio”. O que o engenheiro recomendou nem sequer foi um grog brasileiro, substituindo-se o rum pela Cachaça. Explicando: a receita do engenheiro ao “proibir” que os trabalhadores bebessem água, no local de trabalho, mas a tal mistura não é a da Caipirinha que conhecemos. Também não pode ser considerada “Batida de Limão”, outra bebida à base de Cachaça, em que Cachaça, limão e açúcar não são apenas misturados, mas batidos manualmente num recipiente, numa coqueteleira. Também não é “Cachaça com Limão”, uma terceira bebida, que consiste em chupar o limão e beber a dose de Cachaça, ou espremer o limão numa dose de Cachaça, sempre sem açúcar.

Por que a receita do engenheiro de Paraty apenas se assemelha e não é um grog abrasileirado? Porque é uma mistura de água com Cachaça, limão e açúcar. Isso, repito, não é Caipirinha, não é batida de limão, não é Cachaça com limão, não é um drinque. É apenas uma “mezinha”, como se chamava à época uma receita caseira para evitar que a população tomasse em demasia ou qualquer água disponível, que era o maior agente transmissor da cólera. A mistura apenas sugere que a água a ser bebida com alguma cachaça e limão seria suposto “antídoto” às doenças, como se acreditava à época, adicionando-se o açúcar para tornar mais palatável o “remédio”, o preventivo.

Criado pelo almirante inglês Edward Vernon, alcunhado Old Grog, o grog original que os ingleses assim chamavam no Caribe e em África, era a mistura somente de rum com água. Mais tarde, surgiu o rum-água-casca de limão, com ou sem açúcar. Em Cabo Verde, desde o final do século XVI, fabrica-se o grogue, a aguardente de cana-de-açúcar típica do arquipélago, que serve de base para o pontche (com limão e açúcar) e, também, para a nossa Caipirinha, que, se foi exportada para a ex-colônia portuguesa ou se é uma irmã gêmea lá nascida, ainda não se sabe. Mas, também, em Cabo Verde, desde o século XVIII, chama-se “grogue” a mistura de aguardente, limão e açúcar. Mas isso é assunto para outra obra que cometerei antes do meu velório.

Em segundo lugar, essa mistura do engenheiro, se alguém insiste em assim considerar Caipirinha ou assim chamá-la, já tinha sido registrada, como vimos, por Wilberforce, seis anos antes do engenheiro Lamego, na Praia das Laranjeiras, em 1851. Somente registrada. Não criada ou inventada por algum tripulante do Geyser ou algum morador do lugar. Primário e grave equívoco assim concluir. Para mim, insisto, a existência da Caipirinha já era velha nessa data, tinha mais de três séculos, conhecida e consumida desde o nascimento da Cachaça no século XVI, como já escrevi nesta obra. A denominação “Caipirinha” somente se consolida com a Semana de Arte Moderna, mas é “remédio” desde o século XVII, informam os livros de Farmacopeia do Brasil Colônia.

Portanto, a afirmação segundo a qual “a Caipirinha nasceu em Paraty” é pura prestidigitação paroquial, esforço de paroquiano desejoso de promover a paróquia, que não resiste a mais singela crítica. A tese, segundo a qual a Caipirinha nasceu em Paraty, não se sustenta e é resultado contrário às mais elementares e básicas condutas, critérios e métodos próprios da Pesquisa e da Historiografia Científica, empenhada em registrar, interpretar e enunciar, com seriedade, correção e zelo, fato digno de interesse e importância civilizatória.

A criatividade brasileira para usar a Cachaça na cozinha, na copa e no bar é infinita, especialmente com as frutas da terra. No Nordeste, batida é chamada, como disse, de “bate-bate”. Em Paraty, em meados da década de 1960, mais de um século depois da narrativa de Wilberforce, eu me apaixonei por uma “batida motorizada”, criada pelo saudoso e querido Dito Coupê (Benedito Telmo Coupê), dono do tradicionalíssimo Bar do Dito, que fica na Praça Monsenhor Hélio Pires, a Praça da Matriz, no centro da cidade. Pedia-se no balcão: “Uma batida de limão no liquidificador, por favor”. Quando não era o Seu Dito quem preparava a bebida, era o Mixaria (Jonas Virgulino Pacheco), empregado de confiança. O popular Zezeca (José Benedito Nunes da Silva) batizou a bebida de Rucu-rucu, onomatopeia que imitava o barulho que o velho liquidificador fazia ao bater o drinque. Hoje, no Bar do Dito, não existe mais o Rucu-rucu, porém eu divulgo a batida que os meus amigos chamam de Marcelina, por causa da minha paixão por ela.

 

(Trecho da segunda edição do livro
Cachaça – Prazer Brasileiro,
de Marcelo Câmara, Ed. Mauad X, Rio, 2018.
pág. 163 a 169.)

 

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EXCELÊNCIA SENSORIAL DA CACHAÇA*

Um conceito de Marcelo Câmara

 

Nas últimas décadas, a mídia, quase sempre desinformada, afoita e superficial, quando ousa tratar do universo socioeconômico e cultural da Cachaça, pratica variadas impropriedades e asneiras. Exemplo emblemático desses descaminhos é o léxico estranho, próprio de outras bebidas e derivado de um mimetismo tolo, de um macaquismo burro e injustificável, como as pornografias culturais “cachacier”, “terrier da cachaça”, “bouquet da cachaça”, “blend de cachaças”, “blend de madeiras”, “caipirinha de vodka, disto e daquilo”, entre outras pérolas de extrema ignorância e imbecilidade, travestidas de tecnicismo e cientificidade. Superando tais anomalias, surge o jargão “conferir valor agregado ao produto através do envelhecimento”. A frase é a campeã nesse deplorável ranking da insensatez.

 

Aqui não vou comentar esses falsos “valores”, tolices cabalmente demolidas, uma a uma, neste e nos outros livros e ensaios de minha autoria sobre o destilado nacional. Irei centralizar esta reflexão sobre o principal e verdadeiro valor da Economia da Cachaça, que não está no besteirol da terminologia canhestra criada por histriônicos sem graça e dignos de pena, nem por humoristas sem qualquer talento; ou nos esdrúxulos processos pós-industriais que tentam maquiar a Cachaça sem virtudes, nauseabunda, imbebível; nem tampouco nas aberrações com as quais o comércio e o consumo, o marketing e a mídia tentam ridicularizar a Cachaça, ao cometerem tantos crimes contra o destilado nacional. Mais que isto, perpetrar atentados contra o Povo e a Cultura Brasileira.

 

O mais precioso e insubstituível valor da chamada “cadeia produtiva da Cachaça” nela não está, nela não poderá ser verificado ou comprovado. Mas somente nas suas consequências, no seu resultado, na boca e nos sentidos do consumidor: a Excelência Sensorial da Cachaça.

 

Essa Excelência só será alcançada se cada etapa da produção, agrícola e “industrial”, sob o modo e o regime artesanal, e comercial, for cumprida com ética, paixão, ciência e tecnologia. Se cada passo, cada conduta ou ato, por mais singelo que seja, for cumprido com o fermento da humildade e sob o destilo de uma sabedoria que é quatrocentenária, de um conhecimento empírico, iniciado no século XVI, que se consolida através de gerações e dos ciclos econômicos e, principalmente, se confirma e se aperfeiçoa através das pesquisas científicas e aplicações tecnológicas.

 

O primeiro passo para se obter a Excelência, não importando o tipo ou denominação legal, mercadológica, popular ou folclórica da Cachaça, se inicia pela consciência e vontade do alambiqueiro que habitam a Ética, com a adoção de valores, princípios e condutas que não se utilizam de precárias matérias-primas, que não ferem ou desviam processos produtivos, não corrompem a natureza e a composição da bebida. Tais práticas, reunidas e traduzidas em rotinas, não podem se afastar do Bem, do Bom e do Justo, considerando o fabricante o seu próprio trabalho e o de terceiros; e se iluminam pela Fidelidade à Boa Tradição e pela Honestidade que devem impregnar a atividade alambiqueira, com vistas ao produto pretendido e à leal concorrência aos demais fabricantes. A Legalidade é outro elemento ético a ser observado em todas as fases da produção, evitando-se a burla, a dissimulação e os atalhos, no sentido de fraudar as normas, recomendações e critérios estabelecidos em Lei.

 

O segundo fator fundamental no sentido da Excelência Sensorial é a Sabedoria, que inclui a Ciência, empírica e teórica, e a Tecnologia aplicável, provada, aprovada e comprovada, decorrente desta mesma Ciência. Essa Sabedoria, ampla, complexa, normalmente atávica e telúrica, por isso de raízes empíricas, pode ser resumida na palavra internacional e contemporânea know-how, isto é, no “saber fazer Cachaça”, principal, fundamental e insubstituível patrimônio detido por quem deseja fabricar uma Cachaça de Excelência Sensorial. Sem a apropriação desse elemento, é impossível se chegar a bom porto.

 

O terceiro instrumento imprescindível a quem quer produzir uma grande e preciosa Cachaça é dual, se constitui em dois sentimentos e duas razões simultâneas: a Paixão e a Generosidade. Ambas resultam da Vocação para a Arte da Alambicagem artesanal, para o inventar luminoso, para a criação sempre inédita, exclusiva e surpreendente da Cachaça. O amor ardoroso pelo ofício leva o alambiqueiro ao estudo, à dedicação, ao esmero. Esses exercícios priorizam as ações e reações naturais e conferem aos processos e procedimentos um tempo que denomino “ritmo da vida”. Ou seja, tanto na fermentação, momento da revolução físico-química e biológica dos elementos primários e secundários que irão ensejar a Cachaça, quanto na destilação, instante da transformação, também físico-química que fará do mosto fermentado, o destilado singular – a atitude do alambiqueiro será a de um sábio e sereno viabilizador e espectador, a de um criador das condições ideais para o nascimento da Cachaça. Ele somente irá intervir nos processos se necessário, para deter excessos, estimular paralisias, corrigir acidentes, incidentes ou erros. Por outro lado, a doação incondicional à atividade de fabricar Cachaça, que implica esforço, renúncias, sacrifícios, garantirá a otimização, o aperfeiçoamento das práticas artesanais e irá eliminar as tentações da fraude, do lucro fácil, a avareza, a mesquinhez que apequena, degrada o produtor e o produto.

 

Cumpridas essas exigências e percorridos esses caminhos de rigor ético, conhecimento científico e tecnológico, de consciência e responsabilidade produtiva, de vocação e sentimento humano, será possível fabricar uma Cachaça de Excelência Sensorial.

 

As propriedades e características sensoriais ou organolépticas de uma Cachaça são aquelas que tocam e tangem os sentidos humanos. Assim será necessário impressionar os sensores desses mesmos sentidos, para que o conhecimento, os talentos, a experiência, o treinamento e a percepção do Degustador Profissional qualifiquem, enunciem se uma Cachaça terá Excelência Sensorial, ou seja, se é plena de virtudes; se ela é mediana, possui alguma ou algumas virtudes, ao lado de defeitos; ou se ela é ruim, desprezível, exibe muito mais defeitos, pecados irremediáveis, do que alguma suposta virtude.

 

Através do sentido da Visão, o Degustador irá avaliar a cor da Cachaça, branca, do amarelo tênue ao dourado. Se ela tem pureza, limpidez, brilho e uniformidade cromática, atributos vestibulares para uma Prova ou uma Análise Sensorial de um Profissional que conclua pela Excelência Sensorial.

 

O olfato apurado, exercitado, do Degustador irá detectar se a Cachaça que exibir Excelência Sensorial possui um aroma fascinante, sensual, agradável, prenhe da rusticidade da cana-de-açúcar, do bagaço de cana moído, macerado, prensado, do ambiente do engenho artesanal. A análise olfativa é a antessala do paladar. A memória olfativa do Degustador o remeterá à rapadura, ao melado, aos bolos feitos à base deste mesmo melado. Se a Cachaça é Envelhecida, de qualquer idade ou resultado de qualquer processo de envelhecimento, mais um, dois, até três aromas secundários, coadjuvantes, derivados da madeira e até mesmo do ambiente rústico rural, poderão ser revelados. E nada mais. Não há bouquet, reunião de vários perfumes, em qualquer Cachaça, Nova ou Envelhecida. Nesta última, no máximo, uma reunião de alguns aromas, onde se destaca o do bagaço da cana. Aqueles aromas, além da cana, somados, não ultrapassarão jamais 20% no edifício sensorial da Cachaça. Nela, continuará prevalecendo, dominante, o aroma da cana, do bagaço da cana, do ambiente do engenho.

 

O sabor da Cachaça de Excelência Sensorial será, finalmente, provado na etapa da gustação propriamente dita, da ingestão da bebida. Na boca, a “doce”, a excitante ardência da Cachaça, uma espécie do gênero “água ardente” ou “das aguardentes”. Em seguida, a unidade química: álcool, água e congêneres formando um só líquido, sem partes ou divisões, na boca do degustador. Antes o aspirar ou inspirar e, agora, o beber, antes de engolir, a pinga banha o chão da boca, a língua, as glândulas gustativas, todos os sensores do gosto, e invadem, com os seus elementos voláteis, as fossas nasais, faringe, laringe, os circuitos gustativos e respiratórios, desce pelo esôfago até o estômago num percurso de três segundos. Tudo suavemente, com maciez, sem raspas ou arranhões. Conforto. Delícia. Cana, cana, cana predominantemente. Desejo saciado. Prazer. Imediatamente, a sede por mais uma dose. Eis a grande Cachaça. Por fim, a boa e saudável digestibilidade, sem desconfortos ou mal-estar.

 

Os sensores perceberam, gravaram. Os sentidos registraram, enviaram ao cérebro mensagens. Elas foram processadas. A memória do Degustador promoveu cotejamentos e emulações com registros anteriores, com julgamentos de Cachaças anteriormente degustadas, analisadas e qualificadas. Objetivamente, com base no conhecimento dos princípios e leis científicas evidentes na produção da bebida e das tecnologias aplicadas à sua obtenção, um parecer técnico preliminar será formado em sua mente. Em seguida, será juntado esse parecer técnico aos crivos culturais – inerentes e oriundos da Cultura praticada, da práxis social, vivida e convivida pelo Degustador, no universo onde ele está inserido, e onde se desenvolve determinada marca. Do acréscimo daquele parecer técnico a essa análise cultural, formar-se-á um amálgama crítico-conceitual, uma avaliação, unindo Ciência, Tecnologia e Cultura. Este exercício constitui a Análise Sensorial, ensejando, então, o julgamento final sobre a existência ou não da Excelência Sensorial de uma Cachaça. Aí está a diferença entre a Análise Físico-Química, Laboratorial, processo determinado pela Ciência e por padrões tecnológicos, e a Análise Sensorial, procedimento em que os valores, conceitos, categorias e referências da Cultura, que não alteram ou anulam, é claro, as constatações da primeira Análise, irão determinar os níveis virtuosos ou não de uma Cachaça. Portanto, não há nada de subjetivo, personalístico, de fragilidade opiniática, emocional, de foro íntimo, sentimental, nesse processo. Ou seja, a Ciência e a Tecnologia, seus enunciados verdadeiros de conhecimento, irão se agregar, indissoluvelmente, à Cultura apreendida, vivenciada e assentada na crítica objetiva e no consequente veredicto do Degustador. Ausentes estarão as simpatias ou antipatias por coisas, lugares, situações ou pessoas. Longe as empatias, tibiezas e idiossincrasias. Reinantes, soberanos, estarão o conhecimento, a lucidez, a serenidade, a experiência, o treinamento dos sentidos, a ética, a vocação, o talento, a arte, a capacidade, a competência e a convicção do Degustador Profissional de Cachaças. E a constatação, límpida e inequívoca, da presença ou não da Excelência Sensorial em uma determinada Cachaça.

(*) Posfácio do e-book bilíngue (port/inglês)

Cachaças bebendo e aprendendo – Guia Prático de Degustação /

drinking and learning - Practical guide to tasting (Mauad, Rio, 2006),

primeiro e único livro do mundo sobre degustação de cachaças,

a tratar, critica e pedagogicamente, dos aspectos sensoriais do destilado brasileiro.

 

THE SENSORIAL EXCELLENCE OF CACHAÇA:

A concept by Marcelo Câmara

 

Original text in Portuguese: Marcelo Câmara

English version: Ricardo Gouveia

 

 

During the last decades, the media has mostly been uninformed, anxious and superficial when daring to deal with the socioeconomic and cultural universe of the Cachaça. It has also used of improprieties and blunders, for example, employing a strange vocabulary, more appropriate for other drinks, and derived from foolish imitations, which is both stupid and unjustifiable. Some examples are cultural pornographies such as "cachacier"; "terrier of cachaça"; "bouquet of cachaça"; "blend of cachaças"; "blend of woods"; "caipirinha of vodka, of this or that”, among other pearls of extreme ignorance and imbecility, impersonated with technicality and science. The gibberish "to grant added value to the product through the aging" is the champion in this deplorable ranking of the silliness.

I will not comment here on these false "values", which are stupidities that have been completely demolished, one by one, in this and in other books and essays about the Brazilian national distillate that have been authored by me. I will concentrate this reflection on the main and true value of the Cachaça Economy. This is not found in the nonsense of the stubborn terminology created by dull pity-worth melodramatics or talentless comedians; nor in the odd post-industrial processes that try to dress-up the Cachaça as being without virtues, nauseating and undrinkable; nor in the aberrations with which commerce and consumption, marketing and the media try to ridicule Cachaça, by committing so many crimes against the national distillate; and furthermore, trying to perpetrate attacks against the Brazilian People and Culture.

 

The Sensorial Excellence of Cachaça is the most important item of the so-called "Cachaça production chain", and cannot be verified in such process, but only when the finished product reaches the mouth and is subjected to the senses of the consumer.

 

That Excellence can be achieved if every stage of the agricultural and “industrial” activities are executed with good ethics, passion, technology and science. If every step, activity or act, simple as it may appear to be, is executed with respect and under the distillation of a 400 year-old wisdom built from empirical knowledge. It all started in the sixteenth century, consolidated through generations, going through different economic cycles and above all improved, confirmed with scientific research and technology.

 

Regardless of the many different aspects: legal, marketing, consumer or folkloric, a Cachaça with Sensorial Excellence begins with the conscience of the alembic responsible prioritizing ethic, with the adoption of values, principles, and good quality raw materials. The production should never injury or divert production processes, nor should it ever corrupt the nature or composition of the beverage. Such practices, gathered and translated into routines, cannot be apart from the Good and the Just, including the work of the manufacturer and of third parties.  All inspired by the Fidelity to the Good Old Tradition and Honesty that must permeate the artisan alembic activity, having in mind the desired product and fairness when competing with other manufacturers. Legality is another ethical element present in all phases of production, avoiding mockery, dissimulation and shortcuts, in order to circumvent the norms, recommendations and criteria established by Law.

 

The second fundamental factor to achieve Sensorial Excellence is Wisdom, which includes Practical and Theoretical Science, and use of proven and approved Technology derived from that same Science. This broad, complex, usually atavistic and telluric Wisdom, with its origins just in empirical roots, can be labeled in the international and contemporary expression as “know-how”, that is, the know-how needed to produce an excellent Cachaça. The main, fundamental and irreplaceable patrimony held by those who make Cachaça of Sensorial Excellence. Without this second factor, it is impossible to achieve such achievement.

 

The third indispensable instrument for those who want to produce a great and precious Cachaça is dual and consists of two feelings and two simultaneous reasons: Passion and Generosity. Both result from the Vocation for the Art of Handmade Production, from the bright invent, from the ever new, exclusive and surprising act of Cachaça production. The ardent love of the trade makes a producer to study, to be dedicated and to care. These activities prioritize natural actions and reactions that give processes and procedures what I call the "rhythm of life". That is, both in the fermentation, (the moment of the physical-chemical and biological revolution of the primary and secondary elements that will produce Cachaça), as well as in the distillation, (instant of transformation, also physicochemical that will make of the fermented must, a superior distillate). The role of the producer will be of a wise person, serene enabler and spectator, creator of ideal conditions for the birth of Cachaça. It will only intervene in the processes if needed, stopping excesses, stimulating paralysis, correcting accidents, incidents or errors. On the other hand, the unconditional donation to the activity of making Cachaça, implies in efforts, renunciations and sacrifices which guarantee the optimization and improvement of the art and will eliminate temptations of fraud, easy profit, avarice, pettiness and degrades of both producer and product.

 

Once these requirements are in place and these paths of ethical rigor, scientific/technological knowledge, conscience, production responsibility, human vocation and feelings are present, it will be possible to manufacture a Cachaça of Sensorial Excellence.

 

The properties and sensorial characteristics of a Cachaça are those that touch human senses. Thus it will be necessary to impress the sensors of these same senses, so that the knowledge, the talents, the experience, the training and the perception of Professional Tasters assess, qualify and certify whether a Cachaça would have Sensorial Excellence. The assessment will tell if it is full of virtues; if it is medium, has some or some virtues, alongside defects; or even worst: if it is bad, despicable, and exhibits far more defects, irreparable sins, than some supposed virtue.

 

Through the sense of Vision, the taster checks the color of the Cachaça, white or from soft yellow to gold. A Professional Taster could only start to check if a Cachaça offers Sensorial Excellence if it has purity, clarity, and chromatic uniformity.

 

The Professional Taster continues his work to feel if that Cachaça has fascinating, sensual, pleasant aromas and if it is pregnant with the rusticity of the sugar cane, of the crushed cane, of the macerated/pressed bagasse and of the environment of the sugar mill. Olfactory analysis precedes palate. The olfactory memory of the taster will refer to brown sugar, to molasses, to cake made with molasses. If Cachaça is aged, of any age or the result of any aging process, one, two, or up to three secondary aromas, coadjutants, derived from wood and even the rural rustic environment, may be felt, but nothing else. There is not to consider a real bouquet, the meeting of various perfumes, in any Cachaça, New or Aged. In Aged Cachaça it may be possible, at most, to detect few aromas where the aroma of the cane and the bagasse of the cane stand out. Those aromas, in addition to the cane, will never exceed 20% in the sensorial building of Cachaça. In it, the aromas of sugarcane, bagasse and mill environment will continue to prevail.

 

It is with the ingestion of the drink that the taste of a Cachaça with Sensorial Excellence is verified. The drink is placed in the mouth, to feel the "sweet" and exciting ardor of the Cachaça, genre of "burning water" or "spirits." Then it is felt the chemical unit: alcohol, water and the like forming a single liquid, without parts or divisions, in the mouth of the taster. The ritual asks that before swallowing, the drink wets the floor of the mouth, tongue, taste glands, taste sensors, and then invade, with their volatile elements, the nasal cavities, pharynx, larynx, the gustatory and respiratory circuits, going down from the esophagus to the stomach in a course of three seconds. All of this happens with softness, without ardor or scratches. Comfort. Delicious. Cane, cane, cane predominantly. Desire sated and pleasure. Immediately after, thirst for one more dose. Here is the great Cachaça. Lastly, the good and healthy digestibility, without discomforts or malaise, confirmed.

 

The nose noticed. The senses registered and sent messages to the brain. These messages were processed. The taster's memory promotes checks and emulations with previous records of judged Cachaças, analyzed and qualified. Objectively, based on scientific principles and technological knowledge applied in the production of the beverage toward its attainment, a preliminary opinion can be formed in the mind. However, it will be joining this technical opinion to the cultural sketches - inherent and derived from the practiced culture, the social praxis lived and lived by the taster, in the universe where he/she belongs, and where a certain brand is developed. Forming a critical-conceptual amalgam with union of Science, Technology and Culture - will constitute the Sensorial Analysis, and then, the final judgment on the existence or not of Sensory Excellence of a Cachaça. Here is the difference between the Physical-Chemical, Laboratorial, Science-determined and Technological Patterns, and Sensory Analysis, a procedure in which the values, concepts, categories, and references of Culture, which do not, of course, of the first Analysis, will determine the virtuous levels of a Cachaça. There is nothing subjective, emotional and sentimental in this process. Absent will be the sympathies or dislikes for things, places, situations or people. Away from empathy and idiosyncrasies, deciding will be the knowledge, experience, and training of the senses, ethics, vocation, talent, art, ability and competence of the Professional Tester of Cachaças confirming clear and unequivocal presence or not of Cachaça Sensorial Excellence.

 

E-book's postface of Cachaças drinking and learning - Practical guide to tasting

by Marcelo Câmara (Mauad, Rio, 2006)

 

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Dias de Infância, Memória da Fazenda do Fundão:

obra-prima do Documentário Brasileiro.

Marcelo Câmara*

 

O Fundão é um paradisíaco fundo de golfo, se um pequeno fiorde existe, com praia de areia, mangues com muita vegetação e lama, no litoral sul de Paraty, RJ, entre a Ponta Grossa e o Saco do Mamanguá. O Saco do Fundão. Era a sua costa, em meados do Século XIX, uma de muitas glebas de terra de Domingos Feliciano Corrêa, grande proprietário de fazendas, produtor rural, patriarca de grande descendência, famoso pelas Cachaças que fabricava, inclusive estabelecendo o primeiro engenho a vapor em Paraty no final do Século XIX. Porém, a legendária Fazenda do Fundão não foi obra de Domingos, mas construída e consolidada, no início do século passado, por um de seus filhos, Pedro Erasmo de Alvarenga Corrêa, conhecido como Seu Peroca, outro afamado fazendeiro, brilhante alambiqueiro, exímio administrador rural.

 

A Fazenda do Fundão foi um belo sítio de produção agrícola, com casa grande, engenho com roda d’água para produção de Cachaça, rapadura e melado, paiol, curral de leite, pátio para secagem de feijão e cereais, inúmeras espécies silvestres e frutíferas, canavial, várias lavouras, pomar, criação de gado e de muitos animais, hortas, variados cultivos, praia, mangue. O Fundão fez história pela excelência de seus produtos e pela maneira notável,  moderna e eficiente, de como era bem administrada. Seu Peroca e Domingas Ayres Corrêa foram pais de prole numerosa – treze filhos - e laureado aguardenteiro. Seu Peroca produzia as célebres e premiadas marcas de Cachaça: Branca do Peroca, Azulada do Peroca e Branca do Fundão. Algumas garrafas delas tenho orgulhosamente comigo, e as bebo em dias extraordinários.

 

Com a morte do Seu Peroca em 1964, a Fazenda do Fundão foi vendida para um milionário paulistano que a destruiu por completo: aterrou o mangue, viveiro de espécies e habitat de aves marinhas, dizimou pomares e matas nativas, todas as benfeitorias (casa, engenho etc.), provocou erosões no solo, enfim arrasou o Fundão. Eu, na juventude, ainda alcancei ruínas e a bela e imponente roda d’água do engenho. Triste, desolador. Criminosa a terra arrasada que se consumou.

 

A filha caçula do Seu Peroca (apenas ela e uma irmã estão vivas), a professora e escritora Maria Thereza Corrêa Ermlich, que vivia em São Paulo, SP, – nas suas vindas a Paraty durante o desmonte do Fundão e, finalmente, com a sua destruição total – sofreu, chorou, se amargurou muito, especialmente, quando, ela e o marido, o engenheiro alemão Werner Ermlich, resolveram viver definitivamente em Paraty, em 2008. Werner trabalhou décadas no Brasil. O casal teve duas filhas, Cláudia e Sigrid. Maria Thereza, a Teleca, hoje viúva, mora na Cidade de Paraty.

 

O documentário longa-metragem Dias de Infância – Memória da Fazenda do Fundão, de Tati Bech, de 2015, é uma extraordinária obra de arte. Belíssima! Um filme para chorar, sorrir, pensar, amar. Admirável, majestosa, impressionante a capacidade da cineasta para recriar, atualizar, sublimar e eternizar, cinematograficamente, como arte cinematográfica, como Cinema, os dois preciosos livros artesanais de Maria Thereza Corrêa Ermlich. São eles: Histórias Frutíferas – Lembranças da infância na Fazenda do Fundão em Paraty (Ed. da autora, 2ª ed. revisada, Paraty, 2010): e Lembrou-se, Xiba e Zepelim – Histórias da antiga Fazenda do Fundão em Paraty (Ed. da autora, 2ª ed. revisada, Paraty, 2010). Para escrever e publicar os dois livros, Maria Thereza teve a valiosa assessoria editorial de Sylvia Junghähnel, uma alemã-paratyense, pedagoga, consultora e guia de Turismo, especializada em Atrativos Naturais e Observadora de Aves, que organizou ambos os trabalhos, inclusive escrevendo a apresentação do primeiro. O lançamento do filme ocorreu na Casa da Cultura Câmara Torres, no Centro Histórico de Paraty, a  22 de agosto 2015, presentes a Família Alvarenga Corrêa, Ermlich e centenas de paratyenses.

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Além de realizar, em imagens e som, os dois livros de Maria Thereza, a diretora Tati Bech os enriqueceu ainda mais com a gravação de tesouros sociológicos e etnográficos, que são as músicas, os cantos, os contos, os depoimentos, as memórias, os personagens, a narrativa, as paisagens, os fatos, os bens, os dotes, os dons da tradicional Família Alvarenga Corrêa e da Fazenda do Fundão, seus habitantes, amigos e contemporâneos. Uma época e a sua inestimável fortuna humanística, histórica, cultural e ecológica. O filme de Tati Bech é mais seminal, mais primacial, do que as próprias fontes que o inspiraram, isto é, os maravilhosos livros de Teleca. Evidentemente, não me abstenho de louvar o alto valor socioantropológico, etnográfico, cultural, dos livros da Maria Thereza. O que quero assentar é que a arte de Tati Bech, o seu “fazer cinema” maximizou, enriqueceu, chegou à genialidade, ultrapassou, quilometricamente, os meros recursos, os próprios assuntos cinematográficos iluminados e as ferramentas de que dispunha. Não se limitou a ilustrar as obras de Maria Thereza, colocá-las na tela. Superou, com fidelidade, engenho e ternura, todas as dificuldades e limitações de uma produção cinematográfica independente, que não contou com qualquer patrocínio ou apoio público ou privado. A façanha foi alcançada. Os desafios não estavam apenas nas ausências, nos idos, nos vazios. Foram reais as dificuldades de toda sorte, para reconstruir, com sabedoria, técnica e arte, um tempo, muita vida, um universo inteiro. Mas, principalmente, pela sua invenção sem invencionices, o seu poder de enunciar, comunicar e emocionar sem apelos baratos, sem lugares-comuns, sem cambalhotas tecnicistas, erráticas e falsas.

 

Assim como prometi à Maria Thereza escrever e publicar uma crítica aos livros dela, ouso, aqui, fazê-lo ao rabiscar e divulgar, dizer algo sobre o documentário Dias de Infância, Memória da Fazenda do Fundão. Tenho notícias das dezenas de outros filmes que Tati Bech roteirizou e dirigiu em vários países. Mesmo sem conhecê-los, e imagino que sejam excelentes, assevero, sem risco, pelo que vi neste filme, que Tati Bech é uma artista inteira, brilhante, criadora, neste caso, de uma obra-prima no gênero “documentário”. Trata-se de um filme para ser visto, sentido e aplaudido, para ser alimento, poesia, arte, sonho e reflexão, denúncia sempre, pronto para arrematar muitos prêmios em festivais no mundo.

 

Acesse:

 

www.youtube.com/watch?v=MlLRA8eYszY

 

e assista a essa maravilha da Cultura Brasileira.

 

(*) Jornalista, historiador, escritor, consultor cultural e empresarial.

 

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Dias de Infância, Memória da Fazenda do Fundão

Brasil – 2015

 

Ficha Técnica

Roteiro e Direção: Tati Bech

Fotografia e Câmera: Betânia Gonzalez

Pesquisa e Produção: Sylvia Ju

Animação: Ana Godoy, Bruno Bortotti, Imaginado

Montagem: Ana Godoy, Tati Beth

Música: Elena Chanampa

Arranjos e Interpretação de Violão e Violino: Gustavo Eiriz

Narração: Pérola Paes

Assessoria de Pássaros de Paraty: Sylvia Ju

Captação Sons Pássaros: Juan Pablo Culasso – www.xeno-canto.org

Voz Menina Roda da Viúva: Ana Beatriz de Mello Santos Monteiro

Fotografias: Álbum Família Maria Thereza Corrêa Ermlich/Werner Ermlich

Mixagem e Finalização de Som: Osqui Amante, Estúdio Del Arco

Finalização: Mariana Durán

Correção de Cor: Eduardo De Andrea (Kito)

Equipamento: Jerôme Perret

Produção Executiva: Tati Beth

 

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JOHNNY, NEWTON, TOM E LYRA:

OS PILARES COMPOSICIONAIS DA BOSSA NOVA

 

Marcelo Câmara

 

 

Com a partida, em 2010, do estelar Johnny Alf, com quem tive o privilégio de conviver e trabalhar no início dos anos 1970, escrevendo e produzindo shows, certa mídia tonta e superficial voltou a divulgar mais uma tolice, mais um falso bordão da famigerada "história oficial da Bossa Nossa", cheia de ficções, mentiras e deturpações de toda ordem. A reincidente besteira consiste em chamar Johnny Alf de "precursor" da Bossa Nova. Grave e medonho erro.

 

São quatro os principais compositores, os quatro pilares autorais, composicionais, da Bossa Nova, estética nascida na segunda metade da década de 1950. Quatro músicos criadores, geniais, magistrais.

 

O pianista e compositor Newton Mendonça (*Cachambi, Rio, RJ, 1927 - +Vila Isabel, Rio, RJ, 1960), o mais importante compositor do estilo, quem mais alto e longe foi na estruturação composicional, na sistematização melódica e harmônica da Bossa Nova, quem verdadeiramente fez vanguarda, mais ousou, mais transgrediu, experimentou e promoveu mais invenção. Newton era grande amigo de Johnny Alf. Este foi quem, pela primeira vez, me falou de Newton, e com muito entusiasmo, carinho, admiração. Newton compôs quarenta e seis músicas, vinte e sete criações exclusivas (oito se perderam), dezoito com Tom Jobim (três se perderam) e uma com Fernando Lobo. Restaram, assim, trinta e cinco músicas, dezenove exclusivas (a maioria, obras-primas que permanecem desconhecidas do grande público), quinze com Tom, uma com Fernando Lobo (na verdade, exclusiva de Newton; oficialmente, dos dois). Há vinte e duas músicas de Newton gravadas: oito exclusivas, treze com Tom e uma com Fernando Lobo. Treze músicas de Newton continuam inéditas: onze exclusivas e duas com Tom. Das sete músicas de Tom Jobim com mais de três milhões de execuções no mundo, três são com Newton (Desafinado, Samba de uma nota só e Meditação, em apenas sete anos de parceria), três são de autoria exclusiva de Tom (Wave, Corcovado e Águas de março) e uma tem a parceria de Vinicius de Moraes (Garota de Ipanema).

 

Pobre, órfão, tímido, antissocial, e o único socialista militante da primeira geração da Bossa Nova, Newton foi esportista, na juventude, na Praia de Ipanema: jacaré, peteca e natação. Indo trabalhar na noite em 1950, entregou-se ao fumo e ao álcool, sofrendo três infartos em menos de um ano, o último fatal, aos trinta e três anos. Antes do piano, iniciou-se no violino aos oito anos de idade, quando morava em São Luiz do Maranhão, e na gaita aos treze, quando voltou ao Rio, depois de viver em Porto Alegre, RS, e Aquidauana, MS. Newton foi o primeiro e fundamental parceiro de Tom Jobim, com quem formou a dupla mais importante da Bossa Nova, criadora dos hinos, da música-manifesto, das músicas-símbolo e as mais influentes matrizes da estética. A amizade fraterna iniciou-se quando os dois tinham treze anos de idade, na Rua Nascimento Silva, onde Newton foi morar e era conhecido pelo apelido de Newton gaitinha, depois de Semifusa e, finalmente, de Newton maestro. Também de formação erudita como Tom, porém quase toda autodidata, Newton trouxe o amigo para a Música Popular, ao formar, os dois e mais alguns amigos, uma “orquestra de gaitas” no bairro e levou Tom para assistir os musicais norte-americanos, pois as grandes paixões de Newton eram, além da Música, a Fotografia, o Cinema e a Política. Ao contrário de Tom que era fascinado pela Poesia e queria ser poeta como o pai, o que efetivamente revelou-se mais tarde em obras-primas como Luiza, Ana Luiza e Águas de março, por exemplo. Newton foi trabalhar na noite em 1950, antes de Tom; teve uma música sua  gravada antes de Tom, em 1952; e morreu trinta e quatro anos antes de Tom, em 1960.

 

Newton jamais foi um letrista, e nunca desejou ou procurou sê-lo. As composições da dupla New-Tom eram criações de ambos, que construíam música e letra, juntos, a quatro mãos. “Eram dois gênios que se equivaliam e não dividiam apenas música e letra, mas o próprio banco do piano”, testemunha Thereza Hermmany Jobim, viúva de Tom.

 

Vale notar que, até 1960, ano do falecimento de Newton, Tom Jobim só foi verdadeiramente vanguarda, invenção, quando teve Newton Mendonça como parceiro. Exemplos: Foi a noite, Só saudade, Caminhos cruzados, Desafinado, Meditação (música integralmente de Newton e letra integralmente de Tom, uma exceção na parceria total de música e letra), Discussão, Samba de uma nota só (primeira parte, música e letra de Newton, em 1954; segunda parte, em 1958, música e letra dos dois, a quatro mãos, como toda a obra da dupla), O domingo azul do mar. Com os outros parceiros, e até 1960, Tom foi apenas samba tradicional, samba-canção, canção e até toada, menos Bossa Nova, como depois se configurou alguns sambas de sua autoria. Assim foi com Vinícius de Moraes, Luiz Bonfá, Marino Pinto, Juquinha Stockler, Billy Blanco, Alcides Fernandes, Aloysio de Oliveira, Dolores Duran, Armando Cavalcanti, Paulo Soledade. Sobre os hits Chega de saudade, original e estruturalmente, um samba-choro; Eu sei que vou te amar, um samba canção; Se todos fossem iguais a você, uma marcha-rancho; a rigor, Tom, sem Newton, cometeu apenas uma quase invenção, uma música estruturalmente pré-Bossa Nova: Outra vez.

 

O outro compositor é Tom Jobim (*Tijuca, Rio, RJ – 1927 - +Nova Iorque, EUA, 1994), parceiro de Newton, que a este sobreviveu 34 anos. Tom foi um dos maiores compositores da Música Brasileira. Genialíssimo, criador primoroso. Hoje, certamente, para o mundo, o maior músico brasileiro, o maior criador da Música Brasileira no século XX, disputando esse lugar com o extraordinário Ary Barroso. Tom nunca foi maestro, jamais regeu nada, coisa alguma, nunca subiu em pódio com ou sem batuta, ao contrário do que a mídia costuma divulgar. Quem testemunha é sua própria irmã, Helena, em biografia do músico e todos aqueles que com ele trabalharam. Tom foi, após muito estudo, ensino e ajuda de maestros como Radamés Gnattali, Léo Perachi, Claudio Santoro, entre outros, um excelente, notável e premiado arranjador. Porém maestro nunca o foi. E eu assim erradamente o chamei, cinzelando “maestro” no bronze que fixei na Rua Nascimento Silva, 107, o mais emblemático dos cinco endereços que Tom teve em Ipanema. Entretanto, o meu amigo Roberto Menescal, solitariamente, contraria a minha assertiva e os depoimentos da Família Jobim quando me informa que viu Tom regendo em estúdio uma orquestra, quando gravava uma trilha sonora para cinema. Apesar da idolatria explícita de Menescal a Tom Jobim, a quem chama de “mestre”, eu não posso afirmar que o criador de O barquinho inventa ou mente. Ainda resisto em admitir o “maestro” Antônio Carlos Jobim, como, aliás, reservadamente, todos os que conviveram com Tom comigo concordam, e justificam o título “maestro” como uma “homenagem ao grande músico e compositor”.

 

O terceiro pilar é Carlos Lyra (Rio, RJ, 1936), genial músico, compositor e cantor, que, simultaneamente, a Newton e a Tom, compôs, ainda na década de 1950, e até 1960, tempo de nascimento e estruturação da estética, músicas de vanguarda, novidades melódicas, harmônicas e rítmicas, clássicos e matrizes da Bossa Nova: Maria Ninguém, Lobo bobo, Se é tarde me perdoa, Você e eu, Minha namorada e outras joias. Talentosíssimo, artista culto e plural, político, Lyra jamais deixou de produzir e de se apresentar em várias partes do mundo. Autor de grande e valorosa obra musical, também compõe para teatro, é escritor e possui incursões na Música Erudita. Dos quatro é o único vivo e em incessante atividade profissional, meu vizinho e amigo de décadas.

 

Anterior a Newton, Tom e Lyra, e deles mestre, é Johnny Alf (*Morro da Mangueira, Rio, RJ, 1929 - + Santo André, SP, 2010), pianista virtuosíssimo, cantor único e compositor precioso, que cometeu as primeiras ousadias melódicas, harmônicas e rítmicas e, mesmo antes da batida definidora de João Gilberto, foi responsável pelas criações primevas da estética, experimentais, basilares do estilo: Rapaz de bem, Ilusão à toa, O que é amar, Céu e mar, Senhor Chopin, desculpe. Negro, pobre e órfão de pai, nascido no Morro da Mangueira, Alfredo José da Silva, filho de uma empregada doméstica, criado em Vila Isabel, incrivelmente parece ser a mais nobre dissonância, culta, sofisticada e afinadíssima, de um tipo de música que surgiu entre os meninos brancos, de classe média alta, da Zona Sul carioca.

 

Já ouvi de muitos bossanovistas que a Bossa Nova seria apenas “um estilo”. Para ser Bossa Nova, basta, dizem eles, além da batida sincopada que João Gilberto criou, uma performance, uma maneira de tocar e de cantar, de “dizer” a música e letra. Para mim, que não sou músico, mas tenho senso e cultura musical, o gênero não se esgota aí. É certo que você pode vestir uma mesma música com várias roupagens, ritmos, estilos. Tomar uma música originalmente criada num gênero “x” e executá-la nos gêneros “y”, “w”, “z” etc. Uma valsa pode ser interpretada em ritmo de bolero; um samba como um jazz; colocar uma Ave Maria de Gounot ou de Schubert em ritmo de samba (o que já se gravou várias vezes); uma sinfonia de Beethoven como música pop, de discoteca (já fizeram isto também); tomar um samba-canção ou uma canção ou um samba de raiz e apresentá-lo como se Bossa Nova fosse. Tudo é possível. Mas cada gênero musical possui as suas características, as suas marcas, as suas peculiaridades.

 

Portanto, um músico ou um musicólogo, ao examinar uma partitura, poderá afirmar: esta peça é um chorinho; aquela é um concerto clássico; essa é mambo; ou essa é um samba Bossa Nova. Isto porque, penso, a Bossa Nova, “música popular urbana de câmara”, como bem conceitua Carlos Lyra, pode apresentar uma estrutura típica, ritmos, compassos, pausas, caminhos melódicos, surpresas rítmicas reveladoras, características, identificadoras.

 

O sintetizador de todo o processo desenvolvido na década de 1950, o criador do novo ritmo e estilo, da batida rítmica, o definidor da revolucionária harmonia, da maneira nova de cantar, dividir, interpretar o samba, que consolida o novo samba, chama-se João Gilberto (Juazeiro, BA, 1931), discípulo também de Johnny Alf. É certo que outros violonistas, além de João Gilberto – Garoto, Luiz Bonfá, Bola Sete, Menescal, Carlos Lyra, Manoel da Conceição, o Mão-de-Vaca, Caymmi e outros – naquele tempo, todos procuraram também uma maneira diferente, nova, mais sofisticada, de tocar, de acompanhar, de cantar o samba. Mas João descobriu primeiro. E todos o seguiram. E muitos passaram a tocar, cantar, interpretar, compor samba daquela forma, com aquela nova estrutura, com aquele andamento e divisão rítmica, com aqueles inusitados caminhos melódicos, aquelas soluções harmônicas que Johnny, Newton, Tom e Lyra já estavam fazendo, haviam insinuado ou mesmo cometido, antes de a batida e de o modo de interpretar de João Gilberto se sistematizar, se consolidar.

 

Os jovens Newton, Tom, Lyra e João Gilberto, assim como Menescal, João Donato, Luiz Eça, Ronaldo Bôscoli e outros, formavam a mais assídua plateia do pianista e cantor Johnny Alf nas boates Mandarim (onde revezou com Newton), Clube da Chave, Drink e, principalmente, na boate do Hotel Plaza Copacabana. As canções de Johnny Alf, Newton Mendonça, Tom Jobim e Carlos Lyra favoreceram e estimularam a revolucionária criação, a perseguida façanha de João Gilberto. As músicas dos quatro compositores se adequaram perfeitamente à forma de João Gilberto tocar e cantar. Suas estruturas e características pareciam ter sido feitas especialmente para João, que as acolheu, assumiu-as, vestiu-as com a nova batida e inusitada interpretação, e construiu definitivamente a estética, transformando o baiano de Juazeiro no maior e insuperável intérprete da Bossa Nova. Tom Jobim declarou, por algum tempo, que, se querem dar "um pai" à Bossa Nova, ele é Johnny Alf.

Quatro são os pilares composicionais, quatro são os principais compositores da estética Bossa Nova: Johnny Alf, Newton Mendonça, Tom Jobim e Carlos Lyra. Destes, o mais importante: Newton Mendonça. Seu inventor e mais perfeito intérprete: João Gilberto.

Ipanema, 2011.

 

Marcelo Câmara é:

 

  • Autor do livro A vida e a música de Newton Mendonça, primeira e única biografia do artista (Mauad, 2001).

 

  • Idealizador e produtor do CD Caminhos cruzados – Cris Dellano canta Newton Mendonça,

com músicas de autoria exclusiva de Newton, algumas inéditas,

e composições raras, pouco conhecidas da dupla New-Tom (Ilha Verde/Albatroz, 2002).

 

  • Autor, produtor e apresentador do show A benção Newton Mendonça,

com os filhos do compositor, Fernando (1959-1999) e Renato Mendonça (1956-2014) e Antônio Nastari. (Toca do Vinicius, Ipanema, Rio, RJ, 1997).

 

  • Autor, produtor e apresentador de Caminhos cruzados – a música de Newton Mendonça, primeiro show comercial dedicado à obra do pianista e compositor, com o violonista, cantor e compositor Alan Vergueiro, sobrinho de Newton.

(Vinicius Show Bar, Ipanema, Rio, RJ, 2008).

 

  • Criador, em 2009, e líder do Movimento Parque Newton Mendonça, que pretende homenagear a memória do artista,

dando o seu nome ao Parque da Bossa Nova, a ser construído pelo Governo do RJ, no Leblon, Rio de Janeiro, RJ.

 

 

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OS 50 ANOS DA MORTE DE NEWTON MENDONÇA

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                                                                                    (Foto: Acervo Família Mendonça)

 

        Newton Ferreira de Mendonça

          Pianista e Compositor

 

        * Cachambi, Rio de Janeiro, RJ, 14.2.1927
           † Vila Isabel, Rio de Janeiro, RJ, 22.11.1960

 

 

 

"O mais importante compositor da Bossa Nova"

"O estruturador da Bossa Nova
em termos composicionais,
quem mais ousou e fez vanguarda."

"O mais ipanemense dos artistas brasileiros"


Marcelo Câmara
Biógrafo de Newton Mendonça
 

APENAS UMA MISSA.
E O SILÊNCIO
.

 

No dia 22 de novembro, Dia da Música e Dia do Músico, completaram-se cinquenta anos da morte precoce e repentina, aos 33 anos, do pianista e compositor Newton Mendonça, o primeiro e fundamental parceiro de Tom Jobim, com quem formou a mais importante parceria da Bossa Nova. Mantendo a tradição cinquentenária de omissões e erros, cinismo e hipocrisia, de boicote sistemático ao seu nome e à sua obra, não foram produzidos nenhum programa especial no rádio ou na TV, nem editado nenhum suplemento especial em jornal ou revista, nenhum show foi realizado, nenhuma homenagem dos artistas, instituição ou governos, nenhuma celebração. Apenas uma Missa que o jornalista Marcelo Câmara, biógrafo do compositor, e a família de Newton mandaram celebrar na Igreja N. Sa. da Paz, pela sua alma e memória, em Ipanema, bairro aonde chegou aos treze anos. E a expectativa de que o Governo do Estado do Rio de Janeiro denomine “Parque Newton Mendonça” o Parque da Bossa Nova, a ser construído no Leblon, para homenagear a arte revolucionária e a memória de Newton na sua cidade, que nunca se lembrou dele para dar nome sequer a uma sala de aula. Na Missa, o Padre Jorge Luiz Neves, o popular Padre Jorjão, que é músico e admirador da obra de Newton, numa bela homilia, no Dia de Santa Cecília, protetora dos músicos, destacou “a simplicidade, a genialidade e a vanguarda” do compositor. Nas “Preces Comunitárias”, o celebrante pediu a Deus “que o Governo do Estado do Rio de Janeiro se sensibilize e denomine, por justiça, ‘Parque Newton Mendonça’ o Parque da Bossa Nova”. Apesar da ampla divulgação, estiveram presentes à cerimônia apenas o crítico e historiador Marcelo Câmara, o neto de Newton, o jovem Victor Lopes de Mendonça e sua mãe, Rosália Lopes de Mendonça. Nenhum artista, ninguém da Imprensa, nenhuma autoridade.

 

Para Marcelo Câmara, “Newton Mendonça é o principal compositor da Bossa Nova, quem mais alto e longe foi na estruturação composicional, na sistematização melódica e harmônica da Bossa Nova, quem verdadeiramente fez vanguarda, mais ousou, mais transgrediu e promoveu mais invenção na estética nascida na Zona Sul carioca, na segunda metade dos anos 1950. Caminhos melódicos inusitados, ricas e surpreendentes soluções harmônicas, insinuações rítmicas inovadoras” – explica Marcelo Câmara. Newton Mendonça, sozinho e com Tom Jobim, é o compositor dos primeiros e maiores clássicos e músicas-matrizes da Bossa Nova. Deixou 35 músicas: 19 de autoria exclusiva (onze continuam inéditas), 15 com Tom (treze gravadas) e 1 com Fernando Lobo. Newton é o criador, com Tom, de clássicos como Desafinado, Samba de uma nota só, Meditação, Discussão, Caminhos cruzados, Foi a noite, Só saudade, O domingo azul do mar, entre outros, além de obras-primas exclusivas, reconhecidamente precursoras e vanguardas da estética como Você morreu pra mim, Verdadeiro amorSeu amor, você (uma das finalistas do Festival do Rio - As mais belas canções de amor, 1960), Canção do azul, Nuvem, O mar apagouCanção do pescador (vencedora do primeiro festival de música popular brasileira de âmbito nacional, promovido pela Record, em 1960, no Guarujá, SP) e Quero você, principal tema da trilha do filme Os desafinados, de Walter Lima Júnior. Das sete músicas de Tom Jobim com mais de dois milhões de execuções no mundo, três são resultado de uma parceria de apenas sete anos com Newton Mendonça, três são de autoria exclusiva de Tom e uma foi feita com Vinicius de Moraes.
 


Newton Mendonça e Ipanema:
amor e arte de uma vida inteira.


Marcelo Câmara

 

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Newton Mendonça ao piano, semanas antes da sua partida.

(Foto: Acervo Família Mendonça)

Newton Mendonça chegou a Ipanema em 1940, aos treze anos, indo morar na Rua Nascimento Silva. Dois anos depois, com quinze anos, conheceu Antonio Carlos Jobim, o Tom, da mesma idade, que residia na Rua Sadock de Sá. Do encontro surgiu uma grande e fraterna amizade, uma produtiva e fértil parceria musical. Com quinze anos de idade, Tom começou a estudar música. Newton já era músico desde os oito anos, quando teve as primeiras lições de violino em São Luís, no Maranhão. Em Ipanema, Newton aprendeu a tocar gaita e iniciou os estudos de música clássica, exercitando-se no piano da irmã, Norma, esporadicamente sob orientação de professor, e, quase sempre, como autodidata. “Newton Gaitinha” foi o apelido que ganhou no Colégio Militar, onde era aluno “gratuito-órfão”, pois não se separava do instrumento. Newton levou Tom, e toda a sua turma de amigos de Ipanema, a tocar gaita. Uma “orquestra de gaitas” foi formada e se apresentava na Praça General Osório. Newton, com a ajuda dos musicais norte-americanos, atraiu Tom para a música popular.

 

Em 1950, Newton estreava, antes de Tom, como músico profissional: pianista da Orquestra (de baile) de Waldemar, inaugurando uma carreira de dez anos como músico na noite carioca. Bares, restaurantes, boates, hotéis e clubes. Em algumas casas, revezou com Johnny Alf e com o próprio Tom. Do Posto Cinco, passa pelo Clube da Chave, a French Can CanTascaMocambo e Mandarim. Marca o Ma Griffe,no Beco das Garrafas, faz o chá do Hotel Miramar, e só se afasta do piano com a morte precoce e repentina, aos 33 anos, num dia de folga, sem trabalho, “Dia do Músico”, quando era, há quatro anos, o pianista do Le Carroussel, no Beco do Joga a Chave. Em 1952, também antes de Tom, é lançado o compositor Newton Mendonça: o samba-canção "diferente" Você morreu pra mim, na gravação “moderna” de Dora Lopes. No ano seguinte, em 1953, foi gravado Incerteza, a primeira composição da dupla New-Tom, que viria a ser “a mais importante parceria da Bossa Nova”. Em Ipanema, Newton Mendonça cresceu, amou, sonhou e criou quase toda a sua obra revolucionária. Depois do primeiro apelido, “Newton Gaitinha”, recebeu mais dois: “Semifusa” e “Newton Maestro”. Em Ipanema, Newton Mendonça, sozinho e com Tom Jobim, se ergueu e se afirmou como o mais importante compositor da Bossa Nova, quem mais alto e longe foi na estruturação composicional, na sistematização melódica e harmônica da Bossa Nova, quem verdadeiramente fez vanguarda, mais ousou, mais transgrediu e promoveu, ricas e surpreendentes soluções harmônicas, insinuações rítmicas inovadoras.

 

Na Praia de Ipanema, o atlético Newton foi um dos melhores que pegavam ondas “de jacaré”, “de peito”, e era campeão de peteca, esporte e lazer predominante nas areias do Rio, na década de 1940. Newton teve quatro residências em Ipanema, sendo que o endereço “Rua Prudente de Morais, 1033”, uma quitinete em cima de uma garagem, foi o lugar de criação da maioria das 35 canções que ele compôs e deixou para a Música Brasileira: 19 de autoria exclusiva (onze inéditas), 15 com Tom Jobim (treze gravadas) e 1 com Fernando Lobo. Em Ipanema, nasceram os dois filhos de Newton e Cirene Mendonça: Renato (1956) e Fernando (1959-1999). De Ipanema, Newton Mendonça jamais se afastou. As exceções, compulsórias, por força das contingências da vida, ocorreram em dois momentos: o primeiro, em 1954, por um período inferior a um ano, quando foi morar em Copacabana; o segundo, no final de 1959, quando muda, com a família, para Vila Isabel, onde no ano seguinte, sofre o terceiro infarto. E morre. Trinta e quatro anos antes de Tom.

 

O choro Ipanema, de Newton Mendonça, continua inédito.

 

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Assista a reportagem de Nelson Motta no Jornal da Globo

sobre a grande música de Newton Mendonça, clicando

NM com Célia Reis Beco.jpg

    Newton acompanha Célia Reis no Ma Griffe,
    no Beco das Garrafas, em 1956.

    (Acervo Célia Reis)

NM com filhos

                                                                                                                                                                              Com os dois filhos, Renato e Fernando,
                                                                                                                                                                              meses antes da sua morte.

                                                                                                                                                                                                           (Acervo Família Mendonça)

 

As 35 composições de Newton Mendonça
(Newton compôs 45 músicas – 10 se perderam)

 

1      Adeus, Chico Viola (inédita)

2      Ana Maria (inédita)

3      Brigas (Podes voltar) (c/ Tom Jobim)

4      Caminhos cruzados (c/ Tom Jobim)

5      Canção do azul

6      Canção do pescador – Canção vencedora da Festa da Música Popular, primeiro festival de música popular brasileira,                                                        de âmbito nacional, promovido pelo jornal Última Hora e TV Record, Guarujá, SP, 1960.

7      Desafinado (c/ Tom Jobim) – Considerada a “Canção-Manifesto da Bossa Nova”.

8      Discussão (c/ Tom Jobim) – Considerada por Marcelo Câmara, “a canção-matriz de grande parte da produção de                                                                         Bossa Nova na década de 1960”.

9       Ela é chave de cadeia (inédita)

10    Foi a noite (c/ Tom Jobim) – Primeiro sucesso da dupla New-Tom.

11    Incerteza (c/ Tom Jobim) – Primeira música gravada da dupla New-Tom.

12    Ipanema (inédita)

13    Luar e batucada (c/ Tom Jobim)

14    Meditação (c/ Tom Jobim) – Newton e Tom faziam, juntos, música e letra. A única exceção é Meditação, cuja música                                                                 é, integralmente, de Newton, e a letra, integralmente, de Tom.

15    Nega maluca (inédita)

16    Notícia de jornal (Maria da Conceição) (inédita)

17    Nuvem

18    O domingo azul do mar (c/ Tom Jobim)

19    O mar apagou

20    O tempo não desfaz – Jurídica e oficialmente, a primeira composição exclusiva de Newton Mendonça gravada em vida                                                    do compositor, em 1960.  Mas, na verdade, Você morreu pra mim, "em parceria com Fernando                                                        Lobo", é uma criação exclusiva de Newton, e foi gravada e lançada em 1952.

21     Palavras (inédita)

22     Perdido nos teus olhos (Você para mim foi sonho) (c/ Tom Jobim) – Apenas uma gravação, de Dick Farney.

23     Quero você – Principal tema da trilha sonora de Os desafinados, filme de Walter Lima Júnior, 2007.

24     Recordando (inédita)

25     Samba de uma nota só (c/ Tom Jobim) – Considerada “a canção-símbolo da Bossa Nova” – a segunda música                                                                                                   brasileira mais executada no   mundo. A música e letra da primeira parte                                                                                             foram feitas exclusivamente por Newton em 1954. A segunda                                                                                                                 parte, composta, música e letra, pela dupla New-Tom, somente em 1958.

26     Sem você (c/ Tom Jobim) inédita

27     Seu amor, você – Oitava classificada e finalista do Festival do Rio - As mais belas canções de amor, 1960.

28     Só saudade (c/ Tom Jobim)

29     Teu castigo (c/ Tom Jobim)

30     Tristeza (c/ Tom Jobim, somente música, letra perdida) (inédita)

31     Vento frio (inédita)

32     Verdadeiro amor – Na opinião de Marcelo Câmara, a mais bela canção de criação exclusiva de Newton Mendonça.

33     Você é ou não é (inédita)

34     Você morreu pra mim (c/ Fernando Lobo) – Primeira música gravada de Newton Mendonça. Na verdade, música e                                                                                                 letra de Newton Mendonça.

35     Você voltou tarde demais (inédita)

 

 

Fontes p/ conhecer Newton Mendonça

 

 

Web sites: www.ilhaverde.net

                      www.dicionariompb.com.br/newton-mendonca

 

Bibliografia: Marcelo Câmara - A vida e a música de Newton Mendonça, Mauad, 2001.

 

Discografia fundamental:

 

Caminhos cruzados - Cris Delanno canta Newton Mendonça (Idealizado e produzido por Marcelo Câmara, c/ produção e direção musical, arranjos e participação em todas as faixas de Roberto Menescal)

Ilha Verde/Albatroz/Nikita. RJ, Brasil, 2002 (vendas e informações: escrever p/ este site)

 

Antonio Carlos Jobim - Meus primeiros passos e compassos (CD c/ vários intérpretes. Primeiras gravações, fonogramas originais das obras da dupla Newton Mendonça e Tom Jobim) Revivendo, Brasil

 

Tom Jobim - Raros Compassos - Volumes 1, 2 e 3 (caixa c/ 3 CDs c/ vários intérpretes. Primeiras gravações, fonogramas originais das obras da dupla Newton Mendonça e Tom Jobim) Revivendo, Brasil

 

Caricia (CD de Silvinha Telles c/ os fonogramas do LP de 1957) Emi

 

Silvia (CD de Silvinha Telles c/ os fonogramas do LP de 1958) Odeon Japan

 

Amor de Gente Moça (CD de Silvinha Telles c/ os fonogramas do LP de 1959) EMI Odeon

 

João Gilberto Prado Pereira de Oliveira (LP, CD) WEA, 1980

 

Amoroso (LP e CD de João Gilberto) WEA, 1981

 

Live at the Montreux Jazz Festival (LP duplo e CD de João Gilberto) WEA, 1986

 

The Legendary João Gilberto (CD c/ os fonogramas do LP Chega de Saudade, Odeon, 1959) World Pacific, USA, 1990

 

O mito (CD de João Gilberto c/ os fonogramas do LP O amor, o sorriso e a flor, Odeon, 1960) Odeon, 1992

 

Eu sei que vou te amar (LP, CD de João Gilberto) Epic, 1994

 

João voz e violão – João Gilberto (LP, CD), Universal, 2000

 

Princípios da Bossa – Vários (CD), (compilado e organizado por Tárik de Souza), Universal, 2004

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O DEBATE SOBRE O GENTILEZA

 

Depois do artigo crítico sobre o Gentileza, de autoria de Luiza Petersen e Marcelo Câmara, publicado em 21.2.2010 no Jornal do Brasil, o veículo exibiu uma réplica oito dias depois, com a publicação de carta de Leonardo Boff, que pode ser lida, sob o título Gentileza, clicando-se no link:

http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=030015_13&pasta=ano%20201&pesq=%22Leonardo%20Boff%22&pagfis=4340


Na edição do dia 8 de março de 2010, o Jornal do Brasil publicou a tréplica, encerrando o debate. Abaixo, os dois textos de Luiza e Marcelo.

 

A crítica:

A verdade sobre o mito Gentileza

Luiza Petersen
Professora

Marcelo Câmara
Jornalista e escritor

(Publicado no Jornal do Brasil,
edição de domingo, 21.2.2010,
com "chamada" de primeira página.)

 

Muito se tem escrito, falado e teorizado sobre o "Profeta" Gentileza, (José Datrino, 1917-1996), personagem errante no Grande Rio no final do último século. Artigos, reportagens, livros, filmes, Gentileza virou tema e motivo de produção cultural e até tese acadêmica em universidade. Hoje as palavras, frases, bordões, traços, linhas e desenhos, quase todos sem sentido, que criou, escreveu e portava em um estandarte e que também gravou em viadutos e muros do Rio de Janeiro, foram transformados em mensagens e design de produtos hoje largamente comercializados em shoppings e por camelôs da cidade. Gentileza virou interesse na universidade, diversão intelectual; produto, marca, negócio no mercado.

Conhecemos o Gentileza, em meados da década de 1960 em Niterói, onde vivemos infância e juventude. Era encontrado sempre no centro da cidade, na Estação das Barcas, na Praça Araribóia, seu ponto mais constante, onde passava manhãs e tardes inteiras, anunciando o fim dos tempos, vociferando sem trégua contra a moral então vigente, os costumes da época, especialmente criticando comportamento, posturas e modos de trajar de rapazes e moças. Também viajava na barca Rio-Niterói, nos dois destinos. O que se sabia, à época, era que Gentileza residia em Niterói, cidade onde teve o auge de toda a sua "peregrinação" crítica e delatora nos anos de 1960 e 1970. 

Nós, toda a geração que assistiu o aparecimento do Gentileza e com ele conviveu, quase que cotidianamente, pelo menos naquelas duas décadas, podemos afirmar que Gentileza nunca foi "poeta", nem, ao menos, trazia poesia ou poeticidade em suas falações. Gentileza também não foi "profeta" ou "filósofo". José Datrino era um motorista de caminhão alfabetizado que fazia frete em Niterói e cidades vizinhas. A versão generalizada que campeava à época, e jamais destruída, dava conta de que, por ter perdido toda a família no incêndio de 1961, do Gran Circus Norte-Americano na cidade, ficou louco, passou a vestir uma túnica branca, a portar uma tábua com inscrições e a "pregar" a segunda vinda do Cristo, ao tempo que condenava hábitos e costumes de população. 

Furioso, agressivo, truculento, com cabelos e barba compridos, objeto de chacota de alguns, figura estranha para muitos e bicho-papão para as criancinhas, se vestia como um taumaturgo, um Antonio Conselheiro urbano. Mas nada tinha de poesia, de paz, de ternura ou doçura em suas palavras, como hoje se canta e se enaltece na academia e na mídia. Gentileza falava, desacertada e incansavelmente, menos sobre "gentileza", perdão e amor, e mais, e muito, e sempre, muito mais sobre pecados, demônios, crimes, castigos, martírios e apocalipses. Vociferava, ofendia e ameaçava espancar transeuntes. Algumas vezes, a polícia era chamada para "acalmar" o  Gentileza, tal a sua ira insana. 

Sua fala era moralista, medievalesca, maniqueísta, repleta de palavras odiosas, algumas vezes chulas e pornográficas. Tinha um discurso escatológico, esquizofrênico, completamente desarrazoado, contraditório e quase sempre surpreendente, digno de pena e de humor. Combatia o consumismo e satanizava a moda na sociedade e a vaidade das mulheres. As suas principais vítimas eram as mulheres de minissaia ou com calças apertadas, de cabelos curtos, que usavam maquiagem, salto alto e adereços. E os homens com roupas extravagantes para a época como as calças apertadas, bocas-de-sino, camisas coloridas etc. A maioria da população, especialmente as mulheres e crianças, fugia, corria dele, no mínimo se assustava muito, se horrorizava com figura fantasmagórica do Gentileza.

Quem diz ou escreve diferente ou ao contrário disto sobre ele não conheceu o Gentileza, nunca o viu, não o conheceu, jamais o ouviu. Apenas perscruta as suas intrigantes inscrições, as pinça num cipoal léxico caótico, e constrói um personagem que quer, que lhe convém, mas que, verdadeiramente, nunca existiu. Após a sua morte, criou-se o mito Gentileza, curou-se o pobre Datrino, sublimou-se o psicótico e se montou uma ideologia humanística, atribuindo-lhe mensagens de paz e amor ao próximo, respeito aos direitos humanos e convivência solidária e cristã - tudo baseado nas palavras e frases que ele escreveu, primeiro no estandarte que carregava em suas andanças e, depois, no final da vida, fixadas por ele nos viadutos da Avenida Brasil e outros planos da cidade do Rio de Janeiro. Se, nesse tempo carioca, ele se transformou em "profeta, poeta, filósofo, santo", se travestiu em uma figura gentil, cordial, serena, santa, dócil, piedosa, socialmente necessária e admirável - certamente, este personagem, para os que conviveram com ele nos anos 1960 e 1970 em Niterói, será, no mínimo, irreconhecível, espantoso, inimaginável. 

"Gentileza gera Gentileza" era apenas um bordão curioso, rítmico, consonante, entre muitos outros semanticamente desastrosos, que, agora, é apropriado e sacralizado pela academia, no meio de uma infinidade de locuções ora sem nexo e ingênuas, ora típicas de um alienado, de um esquizofrênico. Transformá-lo em taumaturgo de verdade, filósofo, profeta, poeta ou designer gráfico é possível. Basta abstrair, criativamente, essas categorias, reinventá-las como ideias e conceitos, manipulá-las, transportando-as da fragmentada e doentia personalidade do pobre José Datrino para qualquer território "sadio" e lógico. Pronto: eis o "profeta" e mais uma "filosofia".

Recentemente, veiculou-se até que música de Marisa Monte denominada Gentileza, constitui a primeira e única homenagem a José Datrino, uma descoberta da cantora e compositora. Não é verdade. Muitos anos antes, Gonzaguinha, também crente nesse humanismo importante e válido, porém fabricado por intelectuais, sem a autoria de Datrino e deste póstumo, foi o primeiro a cantar com ingenuidade o personagem, e com muito mais beleza e propriedade, ao compor a música Gentileza, incluída em seu CD Gonzaguinha Cavaleiro Solitário (Som Livre, 1993). 

 

 

A tréplica

"Profeta" Gentileza: uma criação acadêmica

Luiza Petersen
Professora

Marcelo Câmara
Jornalista e escritor

(Publicado no Jornal do Brasil,
edição de 8.3.2010,
no Primeiro Caderno) 

 

 

Na edição do último dia 8 do JB, o texto Sempre é tempo do poeta Gentileza tentou anular o nosso artigo A verdade sobre o Profeta Gentileza, publicado oito dias antes. A empreitada foi desastrosa. A réplica, além de não ferir minimamente as nossas informações e argumentos, ao contrário, os robustece. O nosso artigo mostrou o comportamento agressivo e dantesco, o discurso moralista, medieval, apocalíptico, durante as décadas de 1960 e 1970 em Niterói, RJ, e nas barcas da Baía da Guanabara, do andarilho psicótico Gentileza (José Datrino, 1911-1996), transformado, postumamente, pela academia e pela mídia, em "profeta" e "poeta", pessoa doce e equilibrada, arauto da paz e do amor, pregador de um novo "humanismo", construtor de uma nova ordem social e econômica. 

O replicador inicia o seu infausto périplo falando de "mitos", como se Gentileza, natural e sociologicamente o fosse, tal qual na visão filosófica e civilizatória de "história sagrada verdadeira", que o mestre Mircea Eliade nos ensinou há mais de quarenta anos. Em seguida, se pendura na palavra "verdade" contida no título do nosso artigo para dizer que "o mito Gentileza" não pode ser matéria de verdade. Não entendeu o sentido jornalístico da palavra com que a editoria do JB titulou o texto: real, realidade, evidência, "de fato", ocorrência. E ensaiou descambar para uma discussão filosófica, epistemológica e metafísica, inadequada neste espaço, sobre "verdade", esquecendo que a palavra tem várias semânticas e usos, desde nomear uma famosa mula numa fazenda em Rio Claro, RJ, na década de 1960, até ser objeto de um tratado filosófico, passando pelo citado uso jornalístico e pelo registro coloquial: "Não é verdade?..." Ousa, ainda, atribuir-nos a inexistente adjetivação "verdade absoluta", locução que ele escreve, só aplicável aos que creem em Deus. 

À demência do Gentileza, o replicante responde com bordões chistosos e rimados construídos e ditos pelo próprio Gentileza. Subestima a nossa lucidez e inteligência, de milhares de pessoas que conheceram e conviveram com Gentileza, ao afirmar que nós - seres inferiores, "céticos", integrantes da "plebe ignara" - vemos "o louco ao invés do profeta e o esquizofrênico ao invés do poeta". Só ele, o autor do artigo, vislumbra os profetas ("loucos de Deus", sic), consegue ver "o poeta" e "o profeta" no Gentileza. Ao constatar a proeza, eleva o pobre José Datrino ao nível dos grandes profetas da Humanidade como Buda, Moisés, Isaías, Jesus, Maomé, Malaquias, Zoroastro e Confúcio. O articulista, sábio e vidente, escolhido por Deus, e só ele, consegue ver o místico, o consolador, o revolucionário, o profeta e poeta no louco José Datrino. 

Segundo o articulista, Gentileza teve "35 anos de missão profética" (?). E a "depurou" nesse período. Gentileza nunca profetizou coisa alguma. A sua única profecia era repetir, de forma agressiva e ameaçadora, o Apocalipse de João, o último livro da Bíblia. E a criar uma dezena de quadrinhas rimadas e chistosas sobre os "descaminhos do Homem" e as "obras do Capeta". Daí a entronizá-lo como manso e sábio profeta, a sublimá-lo como gentil e doce poeta - vão milhares de anos-luz de lesa-inteligência. A promoção de louco a profeta e poeta assim se deu: as palavras órfãs, as locuções mancas e os adágios rimados foram seletivamente pinçados, reescritos, elevados às categorias de ideias e conceitos. Em seguida, a manipulação e o transporte da fragmentada e doentia personalidade do pobre José Datrino para o território "sadio", lógico e "culto" da academia. Pronto: eis o "profeta" e mais uma "ideologia". 

Sempre existiram personagens, loucos ou não, alcoólatras e abstêmios, semelhantes a Gentileza. Atualmente, centenas deles povoam as cidades e os campos deste País. Eu conheci vários, na capital e no interior fluminense, mais ou menos furiosos, mais ou menos originais, mais ou menos criativos, mais ou menos risíveis, mais ou menos instigantes. Todos podem ser objetos de estudo da Sociologia e da Antropologia. Mas isto não os transforma, necessariamente, em profetas ou poetas. Mas isto é possível, se alguém ou alguns quiserem. 

Gentileza foi um andarilho urbano, que viveu legítima e intensamente sua "insanidade". Divulgou suas críticas ao "capetalismo", ao mundanismo feminino, ao consumismo em geral, pregou sua doutrina maniqueísta e escatológica, repetindo e criando palavras, locuções e aforismos - essenciais, vitais para ele, no seu mundo impenetrável - gravando-as em seu estandarte e nos viadutos do Rio. O seu grafismo não é tão original quanto se alardeia, revelando-se originário de uma cultura dos para-choques de caminhões e das pinturas de paredes de botequins. O seu discurso, reverberante do Apocalipse de João e aterrorizador tal os sermões católicos medievais, é desarrazoado, contraditório, não traz novidades. Tudo isto não é suficiente para qualificá-lo como "poeta", ou "poeta popular". Ou canonizá-lo como profeta de um tempo, crítico sensato e justo de nossos males e crimes, filósofo revolucionário. 

As deduções e elucubrações teóricas do replicador ratificam, inexoravelmente, que a louvável e necessária "ideologia" espiritualizada de convivência humana, de "regras do bem-viver", de paz, de amor, de cortesia e fraternidade atribuída ao psicótico José Datrino, não passa de uma criação, de uma sistematização e arquitetura exitosa da academia. O desarticulado e contraditório cipoal léxico criado por Gentileza foi matéria-prima para montagem arbitrária de uma "filosofia" e de um rol de "profecias" tão velhas e repetidas como o próprio homem, que tem mantido ocupado alguns intelectuais, feito a festa e o lucro de uma indústria criativa e pirata, de um comércio oportunista. Restam-nos os aforismos e as quadrinhas bem humoradas de uma figura patológica e pitoresca, respeitável como qualquer indivíduo. Mais do que isto é invenção, ficção, diversionismo intelectual. 

 

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METRÔ DE IPANEMA:
CABRAL NEGA HOMENAGEM

A NEWTON MENDONÇA

 

 

O governador do Estado do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral Filho, ignorou, não respondeu não comentou, nem ao menos considerou a solicitação do jornalista Marcelo Câmara, feita em setembro de 2009, por mais de uma vez, para que a Estação do Metrô de Ipanema, da Praça General Osório, na cidade do Rio de Janeiro, que foi inaugurada a 21 de dezembro de 2009, pelo presidente Lula, recebesse o nome do pianista e compositor Newton Mendonça (1927-1960), "o mais ipanemense dos artistas brasileiros". A proposta do biógrafo de Newton seria uma homenagem - ESTAÇÃO NEWTON MENDONÇA - à memória e à obra do artista carioca falecido prematuramente aos 33 anos, que não dá nome sequer a uma sala de aula na cidade.

Newton Mendonça é o genial compositor, com Tom Jobim, de Desafinado, Samba de uma nota só, Meditação, Discussão, Foi a noite, Só saudade, Caminhos cruzados, O domingo azul do mar entre outros clássicos e canções matrizes da Bossa Nova, além de uma obra de autoria exclusiva grande parte ainda inédita. A solicitação foi formalizada em carta fundamentada de três páginas, em nome da família do músico, de amigos e artistas contemporâneos que, com ele, construíram a Bossa Nova, e da comunidade do bairro. Newton Mendonça - ao lado de Tom Jobim, de quem foi primeiro e principal parceiro e com quem formou a mais importante dupla da Bossa Nova - e de Johnny Alf, outro amigo e precursor do estilo, é considerado por Câmara, "o principal compositor do gênero que abalou o País no final da década de 1950".

Estavam prontos, se consultados pelo Governador, para apoiar totalmente a ideia, como "justíssima, urgente e oportuna", entre outras personalidades da Cultura Brasileira: João Gilberto, Carlos Lyra, João Donato, Paulo Cesar Pinheiro, Luciana Rabello, Roberto Menescal, Tito Madi, Johnny Alf, Walter Lima Júnior, Nelson Pereira dos Santos, Juquinha Stockler, Cris Delanno, Gisele Martine, Thereza e Paulinho Jobim; os críticos Ruy Castro, Tárik de Souza, Nelson Motta, José Ramos Tinhorão e Zuza Homem de Mello; e os seus companheiros de juventude em Ipanema, o artista plástico Eduardo Sued, o poeta Moacyr Félix e o arquiteto Marcos Konder Neto.


Carta do neto de Newton Mendonça

Em virtude da proposta de Marcelo Câmara não ter sido sequer considerada e respondida pelo Governador, o jovem Victor Lopes de Mendonça, neto de NEWTON MENDONÇA, enviou, em nome da família, a seguinte carta, às seções de Cartas dos jornais O Globo e Jornal do Brasil, não merecendo publicação:

NEWTON MENDONÇA: MAIS UMA PUNHALADA

Rio, 21 de dezembro de 2009.

Surpresa e decepção. Estas são as palavras que podem expressar o sentimento da família do pianista e compositor carioca Newton Mendonça (1927-1960), diante do silêncio e indiferença de mais de três meses do Governador Sérgio Cabral Filho à proposta do jornalista Marcelo Câmara, biógrafo do genial artista carioca, primeiro e fundamental parceiro de Tom Jobim, para que a Estação Metroviária da Pça. General Osório, em Ipanema, recebesse o seu nome: ESTAÇÃO NEWTON MENDONÇA. A proposta, feita em nome da nossa família, dos artistas, seus contemporâneos, que com ele realizaram a Bossa Nova, e dos amigos e famílias ipanemenses, não foi sequer considerada e respondida pelo Governador, nem tão pouco levada em conta como sugestão de pauta por esse jornal. 

Pianista revolucionário, compositor de vanguarda, Newton Mendonça, ao lado de Tom Jobim, é o criador dos principais clássicos da Bossa Nova como Desafinado, Samba de uma nota só, Meditação, Discussão, Caminhos cruzados, Foi a noite, Só saudade, O domingo azul do mar, entre outros. A sua pequena, magistral e importantíssima obra, é reconhecida, gravada e aplaudida em todo o mundo. Considerado "o mais ipanemense dos artistas brasileiros", o compositor nunca deu nome a uma rua, praça, a qualquer logradouro ou instituição pública ou privada, na cidade, no Estado ou no País. Seria uma homenagem justa, oportuna, urgente, perfeita a esse carioca que viveu quase toda a sua curta e produtiva vida em Ipanema, onde nasceram seus dois filhos - Fernando e Renato - e onde ele produziu, sozinho e com Tom Jobim, quase toda a sua brilhante obra, monumento da nossa Música Popular e da Cultura Brasileira.

Newton Mendonça jamais foi lembrado pelos seus conterrâneos e pelos governos, nunca teve o seu nome gravado em um lugar público. No entanto, tal indiferença é recebida por nós como mais uma ofensa à sua preciosa arte, mais uma punhalada que recebemos, na condição de seus herdeiros e guardiães da sua honra, obra e memória, cotidianamente reduzidas, corrompidas e agredidas por uma parte da mídia e por certos "historiadores".

Victor Lopes de Mendonça,
neto de Newton Mendonça,
seu pai, Fernando Ferreira de Mendonça (in memoriam)
e sua mãe, Rosália Lopes de Mendonça.

 

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Verão de 2009

 

ANGRA:
A CADA VERÃO, MAIS HOMICÍDIOS
COMETIDOS PELOS GOVERNANTES

 

Marcelo Câmara 

A primeira página da edição do Jornal do Brasil, de 3 de março de 1975, trazia os seguintes título e texto, uma "chamada" para uma matéria do jovem repórter Marcelo Câmara:

    Contenção de
    encosta atrasa
    a Rio-Santos

    Problemas de ordem geológica, co-
    mo a necessidade da construção de
    grandes muros para a contenção das
    encostas, uma orografia acidentada e
    um terreno quaternário em processo
    de decomposição, condições não pre-
    vistas pelas firmas construtoras es-
    tão atrasando a conclusão da Rodo-
    via BR-101, Rio-Santos;

    Os engenheiros argumentam que
    o terreno úmido conhecido como talus
    provoca um perigoso processo geoló-
    gico: gigantescas pedras se deslocam
    sobre blocos-matrizes, invadindo o lei-
    to da estrada. No trecho Rio-Angra
    dos Reis, túneis, pontes e viadutos, es-
    tão ainda em fase de acabamento, não
    se podendo prever, com exatidão, a
    data de sua conclusão. (Página 11)


A pauta foi sugerida pelo próprio Marcelo Câmara, um angrense, à chefia de reportagem do jornal. "E deu primeira página", vibrou-se. Na página 11, uma grande matéria, não assinada, com foto, também não assinada, do já veterano e competentíssimo Ronaldo Theobald. Note-se que no final da "chamada" está, indiretamente, o resumo da minha mensagem jornalística: A Rio-Santos jamais será inaugurada. E não foi. Até hoje. E por quê? Porque é uma estrada burra, irracional, criminosa. Destruiu cerca de cem praias, eliminou paisagens, destruiu fauna e flora terrestre e marinha, agrediu, tangeu ou deslocou sítios inteiros da Mata Atlântica e de plantações. Uma grande rodovia, de alta velocidade, destruidora, avassaladora, num litoral encantado, recortado de baías, enseadas, angras e sacos. Povoada de praias, natureza tropical, rica, plural, exuberante. Nunca a estrada está livre, limpa, desimpedida. 

A estrada ideal, adequada, seria de baixa-velocidade, economicamente inteligente, acompanhando o recorte, o desenho do litoral, cheia de belvederes, de "paradas" para o visitante, o viajante, o turista ver, vislumbrar, sentir, parar, extasiar-se, fotografar, filmar, dormir, comprar, gastar, comer, beber, consumir, amar, voltar. A cada chuva, uma encosta, uma barreira cai, despenca, toma conta da estrada. A autoridade, se fosse inaugurá-la algum dia, correria o risco de morrer soterrada. Com a sua comitiva, é claro. Por isto, ela é a única grande estrada federal que nunca foi inaugurada. Nem será. 

O terreno da Serra do Mar, de Mangaratiba a São Vicente, é, como escrevi, um terreno quaternário, em decomposição, com muita água, numa orografia muito acidentada, repleta de pedras imensas que se deslocam sobre blocos-matrizes. Há muita umidade, muita água no solo desse litoral. Na Costa Verde, em Angra, Paraty e Mangaratiba, as montanhas descem íngremes até o mar, as matas beijam o mar. Por isto, Costa Verde. A Mata Atlântica refletida no azul do mar. Em Angra, você pode tomar banho de cachoeira, banhar-se na água doce, dentro do mar. Na canoa. As montanhas da Costa Verde mergulham no mar. Elas estão sempre descendo, mergulhando no mar. Terra, mata e... os bananais. A bananeira, cultura perfeita e adequada à terra úmida e molhada, típica da região, afofa a terra, parece que encharca mais o terreno, umedece-o ainda mais, tornando-o fofo, areado, frágil, solto. E, em Angra, do Rio a Santos, parece que a banana é nativa. Os bananais têm séculos, se reproduzem naturalmente, como mato, relva, capim. Lúcio Costa escreveu que "Paraty" - cidade construída no fundo da baía, na planície, que mesmo não sofrendo com os desmoronamentos - "é a cidade onde os caminhos do mar e os caminhos da terra se encontram, melhor, se entrosam".

De novembro a abril, chove quase todos os dias entre Rio e Santos. Quase sempre, intensamente. Todos nós, caiçaras, mangaratibenses, angrenses, paratyenses, sabemos disto. Temos consciência dos perigos das chuvas, das marés, do vento sudoeste impiedoso, das mudanças bruscas no céu e na temperatura. As autoridades públicas também sabem. Ou fingem que não sabem. 

Nós, angrenses (eu, às vésperas dos sessenta anos), cada um de nós, vivemos desde a infância, os horrores dos deslizamentos de terras nos morros de Angra dos Reis. Principalmente, e sempre, nos verões. Na cidade e na roça, nos distritos, nas praias, nas ilhas, nos costões, nas serras. Sempre as vítimas é o povo mais pobre, que não tem casa, não possui teto, que vive nos morros, pendurados, na periferia. Todo angrense, do indigente ao milionário, do trabalhador ao prefeito, sabe que, em Angra, naquela região, não se pode construir na encosta ou no sopé dos morros. Nem desviar riachos, mexer em águas. Não se movimenta terras sem uma reação imediata, feroz, da Natureza. Construir, com zelo e sob risco, somente em extensos platôs, em planaltos, tabuleiros. Ou em boas várzeas, planícies litorâneas. Mesmo sem construir, sem desviar córregos, escavar solos, os morros, as serras, as encostas desabam com as chuvas. 

Desde criança, assisto a favelização constante de Angra dos Reis e as tragédias na minha terra. São milhares de vidas levadas nas enxurradas de lama e pedra. Famílias inteiras, idosos, crianças, jovens. Ninguém é responsabilizado. E continuam a construir, a se conceder "habite-ses" nos morros da Carioca, do Santo Antônio, do Carmo, do São Bento, da Caixa d'Água, do Abel, da Fortaleza, nos quinze morros da cidade. Também na Ilha Grande, na Gipóia, nas outras ilhas, nas encostas. E todo o ano, é a mesma cantilena, os falsos espantos. Promessas, promessas, promessas. Lamentações, decretação de luto e de estado de emergência e de calamidade pública, "as providências serão tomadas", blá, blá, blá... Onde estão o Código de Posturas e o Plano Diretor de Angra dos Reis? Por que não são cumpridas as legislações federal, estadual e municipal? E o Código Florestal? O que tem feito a defesa civil estadual e municipal? Como tem agido a fiscalização predial e ambiental? E o Projeto Turis, que disciplinou, na década de 1970, a ocupação do solo, a exploração socioeconômica no litoral do Rio a Santos, uma das poucas realizações, sérias e positivas, dos governos militares? Onde está? Nos arquivos, no lixo, na memória dos que tiveram o privilégio de conhecê-lo antes de ser abandonado. 

Onde estão os programas habitacionais, a infraestrutura urbana e rural, as moradias decentes, em locais seguros, minimamente dignas para o povo? Nada. Temos, sim, a cimentação de favelas, as pinturas das fachadas e dos barracos, a maquiagem falsa e barata. Os PACs eleitoreiros, barulhentos, caros, custosos e fraudulentos. Os homicídios ocorridos em Angra dos Reis foram cometidos pelas autoridades públicas: União, Estado e Município. E os três Poderes, Executivo, Legislativo e Judiciário, os dois primeiros nos seus três níveis: federal, estadual e municipal. Desrespeito, atentado, morte à vida humana, crime contra a sociedade. Omissão, ação política criminosa, irresponsabilidade, procrastinação, corrupção, cegueira administrativa, genocídio continuado. Crime de lesa-humanidade. 

Os governantes, do País, do Estado e do Município, atuais e anteriores, são os verdadeiros culpados pelas mortes, pelos homicídios, pelos cadáveres tirados da lama, por entre as pedras de Angra dos Reis. 

"E ninguém foi preso" - a frase mais ouvida no País, desde a instalação da República. República que somos todos nós, que deveria ser de todos e por todos, como sonhou e lutou o maior dos republicanos, o angrense Lopes Trovão.

 

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Dezembro de 2009

 

 

JUQUINHA STOCKLER:

A BATERIA QUE ERA MÚSICA

 

Marcelo Câmara

 

 

No último 16 de dezembro, faleceu, anonimamente, na sua residência no bairro do Leblon, Zona Sul carioca, aos 80 anos, um dos maiores músicos brasileiros: Juquinha Stockler (João Baptista Stockler Pimentel), "o baterista da Bossa Nova", o preferido de João Gilberto, Newton Mendonça e Tom Jobim. Somente um site de jazz de Nova Iorque noticiou a sua morte, um dia depois. Soube, agora, que Tárik de Souza, crítico de estofo e proeminente historiador da nossa Música Popular, com base no site norte-americano, foi o único no País a registrar a partida de Juquinha na sua categorizada coluna Supersônicas, na edição de 1º de janeiro de 2010, do Jornal do Brasil. O meu amigo Tárik de Souza integra comigo o pequeno grupo de estudiosos que constroem a História Real da Bossa Nova e da Música Brasileira, longe da famigerada estória oficial, que predomina na mídia e em grande parte da bibliografia existente, cheia de ficções, mentiras e desvios de toda ordem. 

"Rei da Vassourinha", amigo de juventude de Newton e Tom, parceiro deste último em Faz uma semana, Juquinha foi o baterista da peça Orfeu da Conceição, em 1956, de Vinicius de Moraes e Tom Jobim, das primeiras gravações de Chega de Saudade, com Elizete Cardoso e João Gilberto, e das célebres criações deste para Desafinado e Samba de uma nota só, de Newton e Tom. Os grandes bateristas brasileiros, a partir da década de 1950, sempre se consideraram "discípulos do mestre Juquinha", que, humildemente, se autodefinia apenas como um "bom acompanhador" e costumava dizer que "bateria não é barulho, mas, harmonia, um instrumento musical". Newton, Tom e João Gilberto eram fascinados com o talento e a capacidade de Juquinha extrair um soft sound da sua bateria. 

 

Juquinha Stockler.jpg

De 1950 até 1980, Juquinha, músico de jazz e também compositor, artista versátil, dono de um ouvido absoluto, de primorosa e personalíssima técnica, gravou com os maiores nomes da música brasileira. De Waldir Azevedo a Eumir Deodato, de Elizeth Cardoso a Martinho da Vila, passando por Menescal, Lúcio Alves, Luiz Bonfá, Billy Blanco, Tito Madi, Dorival Caymmi, Dalva de Oliveira, Carlos Lyra, Marcos Valle, Elza Soares, Agnaldo Timóteo, Paulinho da Viola, Clara Nunes, Beth Carvalho, entre outros. Gravou também com astros internacionais como Nat King Cole, Paul Anka, Roy Hamilton, Billy Eckstine, Teddy Randazo, Lucho Gatica, Sarita Montiel, Armando Manzanero, Gregório Barrios e com as orquestras de Roberto Inglez e de Noro Morales, com as quais excursionou na América do Sul. Nos últimos anos, integrou o Stockler Trio, que acompanhava, na noite carioca, o excelente cantor Edson Vaz, seu fiel e leal amigo nos últimos quinze anos. Vaz, que preparava um documentário audiovisual sobre a vida e a carreira de Juquinha, com depoimentos de grandes bateristas em atividade e de outros músicos, cantores e compositores, guarda gravações preciosas de Stockler, tocando jazz e música brasileira contemporânea, especialmente as feitas nos seus derradeiros anos de vida. 

Parte, pobre, sem homenagens, sem notícia, um dos maiores músicos brasileiros do Século XX, artista de primeira grandeza, único e insuperável na sua arte. Juquinha Stockler foi um criador de técnicas, um inventor de percussões em todos os ritmos, que fabricava as peças da sua própria bateria. Morre ignorado pelos veículos de comunicação e pelos cronistas superficiais e preguiçosos, plenos de prestígio, de espaço e tempo em certa mídia calhorda e leviana. 

Ao amigo Juquinha, o sorriso e a saudade. A nossa lágrima, o nosso aplauso. 

DESMISTIFICANDO AS “CACHAÇAS” DE MINAS

 

 

O cachaçólogo Marcelo Câmara recebeu e-mail indignado do Sr. Roberto Carlos Morais Santiago, pessoa que ele não conhece, fabricante da Cachaça Anísio Santiago (antiga Havana), de Salinas, MG, afirmando que o especialista, por criticar a marca, não era "uma pessoa sensata". Marcelo Câmara não respondeu. Em seguida, recebeu outra mensagem de uma terceira pessoa do setor de bebidas de Minas Gerais, solidarizando-se com o Sr. Roberto e registrando ofensas a Câmara. Foi, então, que o crítico descobriu que a mensagem do Sr. Roberto havia sido enviada não só para ele, mas também para "n" pessoas, dezenas de empresários, autoridades, políticos de Minas Gerais, numa tentativa de, falando o que queria, sozinho, sem interlocutor, desmoralizar, antipatizar, incompatibilizar o cachaçólogo com a cachaça de Minas e com os seus produtores. Assim, Marcelo Câmara não teve alternativa se não responder cabalmente ao Sr. Roberto.

Por causa dessa resposta cabal, Marcelo Câmara foi objeto de uma censura pública, e mais ofensas, desta vez do Presidente da Associação Mineira dos Produtores de Aguardente de Qualidade - AMPAQ. 

Abaixo, vão OS QUATRO TEXTOS:

1) ipse literiscom os erros de português e de digitação, a carta do fabricante da Cachaça Anísio Santiago (antiga Havana);
2) a resposta de Marcelo Câmara, única e definitiva;
3) a nota da AMPAQ; e
4) a resposta de Marcelo Câmara ao Presidente da AMPAQ. 

 

1) Mensagem do Sr. Roberto:

Prezado historiador escritor Marcelo Câmara, 

Navegando pela internet encontrei texto seu referente matéria sobre cachaça publicada na Revista História da Biblioteca Nacional(edição 29). Tece severas críticas à cachaça de Salinas e, em especial, à cachaçaHavana-Anísio Santiago, desqualificando-a como cachaça de qualidade. Vejamos oseu comentário: 

6ª) A cachaça Anísio Santiago (ex-Havana), de Salinas, MG, não é uma das mais antigas e tradicionais do Brasil. Quem escreveu isto sabe de cachaça tanto quanto o sertanejo de Bebe-Mijo, no Piauí, sabe de esqui no gelo. Leitura de mídia superficial, errônea e leviana. Para uma bebida que está fazendo 475 anos de vida, uma cachaça de quatro, cinco décadas não significa coisa alguma. Além de não ser cachaça, mas apenas uma cachaça mal envelhecida, filha de uma desconhecida cachaça ruim - a Anísio Santiago não possui Excelência Sensorial alguma. Trata-se de bebida apenas ingerível por quem conhece cachaça, mas nunca saborosa, com qualidade sensorial superior. Minas consome cachaça desde a descoberta do ouro, porém fabrica há menos dois séculos. Salinas, por outro lado, não tem cachaça nem tradição. Produz, há algumas décadas, e em quantidade, cachaça envelhecida de má qualidade, tingidas em madeiras agressivas, oriundas de pingas ruins que não chegam ao mercado, que são escondidas pelos seus fabricantes. Se a Revista quisesse ilustrar o texto com algum rótulo deveria fazê-lo com o de alguma cachaça de Paraty, RJ, o mais antigo centro produtor de cachaça do mundo, que exibe mais de quatrocentos anos de tradição, ciência, arte, excelência na fabricação de cachaça. A Coqueiro e a Corisco, ambas de Paraty, por exemplo, as melhores cachaças que existem, são feitas por famílias que produzem cachaça, no mínimo, há mais de duzentos anos, ininterruptamente, de pai para filho. Sabedoria e mestria entre gerações.

A cachaça Havana-AnísioSantiago é a marca mais importante do município do ponto de vista histórico equalidade (referência aos produtores do município). Em 2006, teve oreconhecimento de Patrimônio Cultural Imaterial de Salinas (Decreto Municipalnº. 3728). A marca representa a história, pioneirismo e qualidade que a cachaçade Salinas conquistou nas últimas décadas. Se tivesse conhecido Anísio Santiago(1912-2002), certamente teria outra opinião sobre ele e a sua fantásticacachaça. A Havana-Anísio Santiago é mais que uma marca debebida respeitada em todo o país. É uma lenda que foi forjada por umpequeno produtor de cachaça que sempre privilegiou a qualidade emdetrimento da quantidade. Se tivesse a oportunidade de conhecer a FazendaHavana teria constatado que o "modusoperandi" da Havana-Anísio Santiago é absolutamenteartesanal cujo método de produção é o mesmo desde 1943. O envelhecimentomédio da marca é 10 anos em dornas de bálsamo antigo. A produção média anual(safra) é de 12 mil litros. 

Respeito, mas nãoconcordo com sua opinião. Desqualificar Salinas e a marca Havana-AnísioSantiago não é uma atitude de pessoa sensata. Atualmente, o municípioé a principal referência nacional na produção de cachaça artesanal. Sãomais de sessenta marcas e produção estimada em cinco milhões de litros porsafra. As marcas mais tradicionais do município são Havana-AnísioSantiago, Canarinha, Indaiazinha, Lua Cheia, Salineira, Seleta, Boazinha, Beija-Flor, dentre outras. Todas são sucesso de venda em todo o país. 

O município é responsávelpor cerca de 45% do ICMS recolhido ao erário mineiro sobre a comercialização decachaça de estabelecimento produtor em Minas Gerais. 

O Festival Mundial da Cachaça de Salinas vem fazendo sucesso desde 2002 quando foi lançado. O eventotem média de público de mais de 20 mil pessoas todos os anos. 

O governo mineiro estáinvestindo 7 milhões de reais na construção do Museus da Cachaça de Salinas comprevisão de inauguração em 2010. É o reconhecimento do povo mineiro do "modus operandi" da cachaça deSalinas. 

Todos sabemos que a suaquerida Paraty (RJ) é uma região que tem suma importância na história dacachaça brasileira. Tanto que conquistou, com mérito, a IndicaçãoGeográfica. Porém, outras regiões têm o direito de fazer história. É o que Salinas está fazendo. Queira ou não, Salinas já faz parte da história da cachaça brasileira e a sua Indicação Geográfica é só uma questão de tempo. 


Cordialmente, 

Roberto Carlos Morais Santiago 

www.robertosantiago.blogspot.com
rcmsantiago@gmail.com
Salinas - MG

 

 

2) A resposta de Marcelo Câmara ao Sr. Roberto:

Prezado Roberto, sensatez, assim como inteligência, saber (humilde e sempre provisório), senso e exercício crítico nunca me faltaram, graças a Deus, em mais de meio século de produção intelectual, vivências e convivências, no universo da cachaça. Convido-o a visitar o meu site -www.ilhaverde.net - para certificar-se disto. 

Nunca ignorei ou desprezei a importância econômica do município de Salinas, e de todo o Estado de Minas Gerais, como grande centro produtor de cachaças artesanais. Lamentavelmente, de cachaças com pouca ou nenhuma Excelência Sensorial. Salinas é um recente produtor, de décadas, pujante, admirável, de cachaças, na sua maioria, ruins, e de uma ou duas marcas apenas razoáveis, bebíveis. Salinas, quase toda Minas Gerais, com raras e preciosas exceções, não produzem cachaças, mas cachaças ditas "envelhecidas", que, na verdade, são pingas ruins e medíocres, mascaradas por um falso envelhecimento, que as torna comercializáveis, palatáveis ao consumidor médio, padrão, que, normalmente, não conhece a Excelência Sensorial da cachaça. Lembro-lhe que cachaça envelhecida não é cachaça. Cachaça envelhecida é cachaça envelhecida. Outra bebida, que Minas muito produz, com defeitos, pois não sabe e nunca soube fabricá-la sob boa técnica e com esmero. 

Não sou um inimigo das pingas mineiras, nem desafeto de seus produtores. Ao contrário. Aprecio algumas marcas e tenho alambiqueiros amigos, competentes, nas Gerais. Prova disto é que aquelas a que me referi, as tais raras e preciosas, habitam os rankings de meus dois livros sobre cachaça, bem como a página Rankings de Cachaças, do meu site. Sempre que sou questionado ou provocado sobre as cachaças de Minas, especialmente sobre as de Salinas, exponho, com ampla e profusa argumentação, as razões científicas e técnicas que provam a sua inferioridade quanto à Excelência Sensorial. Não falo de processo artesanal quase correto, honesto e bem intencionado. Ou de boa e ambiental gestão dos engenhos. Nem de qualidade físico-química, o que até as cachaças industriais possuem. Não é isto. Falo de Excelência Sensorial, riqueza e exuberância sensorial, aroma e gosto agradáveis, sabor delicioso, sempre com primazia e prevalência da cana, tanto nos tipos nova (branca, crua, fresca) e descansada, como no tipo envelhecida, onde a cachaça de qualidade sensorial é modificada, apenas temperada pela madeira apropriada, sem corromper a natureza da bebida, sem estuprar a alma da cachaça. 

Não irei aqui, numa curta mensagem, apresentar toda a minha argumentação que critica a cachaça de Salinas. Não há tempo, disposição, conveniência ou oportunidade para isto. É matéria para um alentado trabalho ou, no mínimo, para uma longa palestra. A minha ciência, a minha sabedoria, a minha ideologia sobre a cachaça - conhecimento, críticas, propostas - estão nos meus dois livros publicados sobre a bebida brasileira: Cachaça - Prazer brasileiro (Mauad, 2004), o primeiro livro dirigido ao mercado, ao consumidor real e potencial do destilado, e Cachaças bebendo e aprendendo - Guia prático de degustação / drinking and learning - Practical guide to tasting (Mauad, 2006), o primeiro livro do mundo (bilíngue port/inglês) sobre degustação do destilado brasileiro, o único a tratar exclusivamente dos aspectos sensoriais da cachaça, o qual, certamente, você ainda não leu. Nesta obra você encontrará os valores, conceitos e características, perfis e parâmetros da Excelência Sensorial da cachaça. Enfim, toda a minha ciência sobre o assunto e as razões das minhas críticas. 

Em síntese, posso lhe adiantar: 1) Salinas, como quase toda Minas Gerais, com poucas e dignas exceções, repito, não produz cachaça - branca, nova e fresca ou mesmo "descansada" - mas oferece ao mercado cachaças ditas "envelhecidas", que são, na realidade, as chamadas "pingas de pau", isto é, cachaças ruins, que são consumíveis após serem tingidas e amadeiradas violentamente no seu gosto com lenhos agressivos, como o bálsamo, por exemplo, por um incorreto, imperfeito processo de "envelhecimento"; 2) A cachaça Anísio Santiago é uma loção de barba, uma Acqua Velva, um líquido de álcool, água e óleo de bálsamo, que engana qualquer um que não conhece cachaça e só bebe pingas industriais e artesanais nauseabundas e vomitativas; 3) Envelhecimento é uma arte tal qual fazer cachaça e beber cachaça, o que é diferente de degustar e bebericar; envelhecer não é tingir cachaça ou transformá-la em um extrato de madeira com baixo, médio ou alto teor alcoólico. 

Reitero que as afirmações acima feitas estão tecnicamente desenvolvidas nos meus livros, especialmente no que trata dos aspectos sensoriais da bebida: Cachaças bebendo e aprendendo - Guia prático de degustação

Se ainda bebesse, gostaria de degustar a Anísio Santiago nova, sem "envelhecimento", a verdadeira e pura cachaça Anísio Santiago, que nunca será oferecida ao mercado, porque, certamente, é imbebível. 

Cordialmente, 

Marcelo Câmara

 


3) A nota da AMPAQ: 

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Belo Horizonte 30 de abril de 2009 


Prezado Sr. 
Roberto Carlos Morais Santiago 

MD. Proprietário Cachaça HAVANA/ANISIO SANTIAGO 


A AMPAQ não poderia ficar sem se pronunciar quanto à manifestação feita pelo Sr. Marcelo Câmara, em que referências totalmente inadequadas são feitas à cachaça Havana/Anísio Santiago, lenda viva da boa e tradicional cachaça de alambique de Minas Gerais. 


Nós da AMPAQ não estranhamos tal fato, já que a qualidade, a tradição, o respeito, dentre outras formas de referência e reconhecimento de um trabalho de sucesso resultam, muitas vezes, em reações pessoais, provocativas, desprovidas de conhecimentos, e que, portanto, não devem ser levadas em consideração. A AMPAQ, dentro do contexto da cachaça de Minas que representa, conhece, de fato, a trajetória da cachaça de alambique do estado e a qualidade real do nosso produto. 


A Cachaça de Minas e, por extensão, a cachaça de Salinas, é produto apreciado e reconhecido por verdadeiros conhecedores de nossa cachaça, que não necessitam repetir a cada instante pseudos dotes intelectuais para justificar posicionamentos. 


Cordialmente, 
Alexandre Wagner da Silva 
Presidente da AMPAQ

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4) A resposta de Marcelo Câmara ao Presidente da AMPAQ: 

Rio de Janeiro, 4 de maio de 2009. 
Ao Sr. Alexandre Wagner da Silva 
Presidente da AMPAQ

Senhor Presidente, 

Através de um amigo de Minas, chegou aos meus olhos teor de carta que circula pela Internet, de autoria de Vossa Senhoria, endereçada ao Sr. Roberto Carlos Morais Santiago, proprietário da Cachaça Anísio Santiago, pessoa que não conheço, na qual são feitos julgamentos sobre a minha pessoa e ao meu trabalho profissional de mais de quatro décadas como estudioso do destilado brasileiro. A missiva de Vossa Senhoria, que também não me conhece, nem tão pouco o meu trabalho, afirma que a minha resposta ao senhor Roberto deriva de reações pessoais, provocativas, desprovidas de conhecimentos, e que, portanto, não devem ser levadas em consideração" (sic). Também insinua que não conheço cachaça, e afirma que eu necessito "repetir a cada instante pseudo dotes intelectuais para justificar posicionamentos" (sic). 

Tais julgamentos tortos são justificáveis e provam que Vossa Senhoria, tal qual o Sr. Roberto, realmente, nada sabem sobre o meu trabalho no universo da cachaça, trajetória e realizações na Cachaçologia, todas publicamente exibidas há anos em meu site - www.ilhaverde.net - e não tem o mínimo respeito por elas, muito menos pelo estudioso, pingófilo e degustador profissional. 

Surpreendo-me com o tom, o conteúdo e o caráter da carta de Vossa Senhoria, pois, além de desconhecer a íntegra do texto que enderecei a Revista, os seus motivos e objetivos, tenho certeza de que o Presidente nunca leu o que escrevo e o que digo a mestrandos e doutorandos que me procuram, muitos deles de Minas Gerais, o que declaro em palestras e em entrevistas à Imprensa sobre as cachaças de Minas, especialmente sobre a Ampaq, desde o seu nascimento em 1988. 

Primeiramente, convém afirmar que, mesmo lamentando o equívoco da sua manifestação, não concordando com a sua desinformada, ofensiva e injusta crítica, registro e defendo o lídimo e incontestável direito em fazê-la, porque se apresenta como um ato legítimo da liberdade de expressão, do exercício de crítica de qualquer cidadão, ainda mais quando, não obstante mal influenciado e circunstancialmente sem nenhuma razão, Vossa Senhoria dignamente preside uma instituição altiva e honrada, disposta a defender os direitos e os interesses de um importante segmento dos produtores de cachaça de Minas Gerais. 

O Sr. Roberto invadiu a minha caixa postal, me qualificando de "ignorante" e "insensato". A fúria do Sr. Roberto decorre de carta que remeti em fevereiro de 2008 à Revista de História da Biblioteca Nacional, na qual, de passagem, teço rápida crítica à ausência de tradição e de Excelência Sensorial no produto que ele fabrica. Trata-se de uma opinião profissional minha, construída, serenamente, tecnicamente, a partir do momento que provei, pela primeira vez, ainda em 1992, a então Havana. Contratado profissionalmente, durante anos, por dezenas de fabricantes de cachaças artesanais e industriais, de vários Estados brasileiros, para proceder a análises sensoriais de inúmeras marcas, emitindo laudos técnicos assinados sobre suas qualidades e defeitos sensoriais, nunca assisti a uma reação desarrazoada, patológica, a uma campanha tão bizarra, insólita e canhestramente orquestrada, envolvendo tantas instituições e personagens, como esta do Sr. Roberto. 

Cumprindo estratégia involuntária e ingênua de marketing do puro, singelo e simplório Anísio Santiago ao lhe conferir preço absurdamente excessivo, não contestado ou rejeitado por aturdidos e iludidos; canonizada pela mídia superficial e veloz; falsamente valorizada, laureada, sim, por “pseudo-especialistas”; festejada pelo consumidor comum sem crivos, e não por conhecedores ou bebedores sábios e experientes - a famigerada marca do Sr. Roberto quer permanecer eternamente como uma fraude de Excelência Sensorial que deu certo e convenceu a todos, indene a qualquer crítica ou reparo, invulnerável a qualquer análise ou julgamento, colocando-se como um produto metafísico, sobrenatural, acima das outras marcas, entronizada como excelência perfeita e máxima. 

Mentira. Farsa. Fraude. 

Além de corromper intensamente a cachaça ruim com madeira agressiva ou por longo período de armazenamento, ou utilizando os dois recursos, minimizando, mascarando, ao máximo, a má qualidade sensorial, e fixar um preço irreal, absurdo, para o produto - outras duas estratégias de marketing de empresas que fabricam cachaças com falsa excelência, de excelência fictícia, com a finalidade de vender mais, persuadindo o consumidor comum, são: 1) o uso de embalagens luxuosas; e 2) criação de tipos de cachaça ditas "especiais, "reserva especial", com "envelhecimento" excessivo (cinco, oito, dez anos...) em carvalho inadequado, bálsamo, amburana etc. ou em várias madeiras, a fim de tirar a identidade, o caráter da bebida que se apresenta como "cachaça envelhecida". O consumidor não saberá o que está bebendo. 

Quem produz cachaça de qualidade, com Excelência Sensorial, exibe, com orgulho, a nova (branca e fresca), pingada na ponta do alambique, a descansada em madeiras quase neutras e a envelhecida em madeiras adequadas, com disciplina e esmero, sob as rigorosas normas físico-químicas e ambientais da boa técnica do envelhecimento. Tudo isto sem temores, sem subterfúgios, sem tergiversações, sem ladinagens. Onde está a Cachaça Anísio Santiago? É temeroso apresentá-la. Certamente é ruim, imbebível. Qualquer alambiqueiro sábio, competente e honesto sabe que nenhuma cachaça armazenada por mais de três ou, no máximo, quatro anos, especialmente em madeiras agressivas, como o aromático bálsamo, não permanece cachaça, e não se torna, verdadeiramente, cachaça envelhecida. O resultado são extratos de madeira com álcool, aquelas às quais um mestre alambiqueiro chamou de "pingas de pau". E isto é o que acontece com quem não obtém uma cachaça com Excelência Sensorial, pura e limpa, de aroma agradável, saborosa, de boa degustação e digestibilidade. A saída, o recurso, é mascarar a sua má qualidade sensorial, maquiá-la com a madeira que fascina e engana o consumidor comum, acostumada a beber cachaças ruins, nauseabundas, artesanais ou industriais, amadeirá-la rápida e intensamente com lenhos agressivos e crus, ou, lenta e excessivamente, com qualquer madeira, mesmo as agressivas curtidas, que tenham hospedado exclusivamente cachaça por décadas. 

Quando descobri que a solitária mensagem privada do Sr. Roberto, que julgava individualizada, dirigida unicamente a mim, Marcelo Câmara, havia sido, numa atitude aética e suspeita de criminalização, distribuída a diversas pessoas, numa tentativa de, falando sozinho, dizendo o que queria, me desmoralizar, me antipatizar, me incompatibilizar com os produtores mineiros e outras personalidades das Minas Gerais, as quais respeito e muito prezo, alternativa não tive se não a de respondê-la a todos os destinatários do Sr. Roberto, empresários, autoridades, políticos e dirigentes associativistas e sindicais. O mesmo faço agora ao remeter esta mensagem a todas as pessoas a quem Vossa Senhoria endereçou a sua carta, repetindo a atitude deplorável do Sr. Roberto. 

O Sr. Roberto, num desvario, e Vossa Senhoria, de afogadilho, provam que, além de não conhecerem o inteiro teor da carta de fevereiro de 2008 à Revista (bem como a resposta da revista e a minha tréplica, cujos três textos podem ser lidos no meu site), ignoram o meu pensamento e as minhas críticas, eminentemente técnicas, embasadas cientificamente, sobre temas, conceitos e aspectos da bebida, amplamente desenvolvidas em meus dois livros e nas centenas de palestras que proferi e degustações que dirigi nos últimos quinze anos em todo o País. Nada há de subjetivo, pessoal, passional ou idiossincrático nelas. Degustação e Análise Sensorial são atos culturais objetivos, práticas profissionais objetivas, que levam em conta elementos exclusivamente objetivos. Nada há de subjetivo ou pessoal nesses exercícios. Gosto se discute porque gosto se forma, se constrói, se educa. E os elementos que compõem o gosto, que formam as avaliações visual, olfativa e gustativa, são igualmente objetivos, concretos, reais, palpáveis, sentidos e medidos. Como eu disse ao Sr. Roberto, e agora repito a Vossa Senhoria: nada tenho, em tese ou preconceituosamente, contra o produto mineiro. Nem motivos teria para tal. Ao contrário, reitero, algumas marcas habitam os cumes dos rankings dos meus dois livros sobre cachaça e são apresentadas no meu site. Tenho, entre meus amigos, muitos alambiqueiros de Minas, honestos e competentes, dos quais louvo as suas atividades. 

Tranquilize-se, Vossa Senhoria: 
em qualquer lugar, município, estado e no Brasil todo, de norte a sul, de leste a oeste, a Excelência Sensorial da cachaça é uma raridade, uma exceção, um milagre
. Isto é próprio da arte e da técnica de fazer cachaça, de descansar cachaça, de envelhecer cachaça. Atente-se que esses fazeres nada tem a ver com os universos de outras bebidas como o irmão rum, o vetusto vinho e outros destilados como o uísque, o bourbon, o gin, a vodca, a tequila etc. São outros universos, com outras culturas, outras histórias e latitudes, outras tecnologias, outros modos e regimes de produção, outras maneiras de consumir. Das seis mil marcas de cachaça e de cachaça envelhecida que estão no mercado (dois tipos de bebida, previstos na própria legislação), pelo menos das cerca de 1 mil cachaças e cachaças envelhecidas que eu tive oportunidade de degustar profissionalmente (avaliar, julgar, diferente de beber e bebericar), apenas, no máximo, quinze marcas, puderam merecer, de mim, notas de 8 a 10. A Excelência Sensorial é a minoria da minoria da minoria. Centenas de cachaças são medianas, regulares (de 6 a 7.9, "dão pra tomar") e milhares são ruins (de 0 a 5.9), imbebíveis. Isto ocorre em qualquer parte: em todo o Estado das Minas Gerais; no Estado do Rio de Janeiro, em Santa Catarina, São Paulo, Bahia, Paraíba, Pernambuco, Alagoas, Espírito Santo, Rio Grande do Norte (todos estes Estados com mais tradição do que Minas); no Paraná, no Rio Grande do Sul e... na quatrocentenária Paraty. Paraty fabrica quase uma dezena de marcas, legalizadas e clandestinas, mas apenas duas possuem Excelência Sensorial, são dignas da sinonímia de maior lastro histórico e cultural: "paraty". As outras são medianas ou são ruins, nauseabundas. Na esmagadora maioria das regiões brasileiras, como em Salinas, não há Excelência Sensorial. Em todos os polos de produção, existem certas cachaças medianas, com alguma ou algumas virtudes sensoriais, e pululam, em excesso, as de má ou sem qualquer qualidade sensorial. Em alguns Estados, não há nenhuma marca com excelência. Em outros, há uma ou duas nessa categoria. Já as marcas medianas são numerosas e habitam todo o País. E as cachaças ruins, industriais (todas) e artesanais (grande parte delas), são maioria em qualquer lugar. 

Quanto à Ampaq, saudei entusiasticamente a sua criação e desenvolvimento, qualificando-a, sempre, como "a mais importante revolução que os mineiros fizeram depois daquela que glorificou Tiradentes"Publiquei isto nos meus dois livros e isto repito, em alto e bom som, há anos. A Ampaq, não me canso de declarar, é um modelo sério, inteligente, eficaz e exitoso, sempre a ser seguido, ao menos considerado, para a agroindústria brasileira da cachaça. É certo que houve tropeços, desvios, erros. É natural a uma instituição integrada por homens. E a crítica, positiva ou negativa, é sempre edificante, necessária, útil. A Ampaq já mereceu um texto meu inteiro, vibrante, de elogios, na coluna Prazer Brasileiro, que, em 1997, assinava no Jornal do Commércio, do Rio de Janeiro, a primeira e única especializada já publicada no País. Acompanho atento, interessado, o admirável trabalho da Ampaq, desde antes das presidências do Walter Caetano e dos irmãos Rodrigo e Alexandre, da excelente Tabaroa. Várias cachaças de Minas já foram, e são, exaltadas por mim, em textos que publiquei em jornais, revistas e no meu site, em entrevistas a emissoras de rádio e de tv, inclusive na famosa entrevista que dei, em rede nacional, ao Jô Soares em 2004, com estrondoso sucesso, reprisada em 2005. Poucas cachaças mineiras desceram no meu ranking, (Germana, Vale Verde). Algumas continuam excelentes, com notas entre 8 e 10, como a cachaça Aroeirinha e as cachaças envelhecidas Tabaroa, Velha Aroeira e Biquinha, entre outras. Entretanto, em Salinas, nunca vislumbrei cachaça com virtudes sensoriais máximas, capazes de acolher o atributo da "excelência". 

Só acredito em trabalhos críticos. Em qualquer ramo ou área da atividade humana. E a minha crítica é profissional, fundamentada, objetiva, honesta, independente, respeitosa. E sempre com propostas. Nela nada há de passional, pessoal, subjetivo, emocional, irresponsável. Assumo-as e as sustento com argumentação, humildade e provisoriedade. Estou longe dos parti-pris, dos jargões e dos doestos, das ofensas de qualquer natureza. Não pratico o opróbio, o deboche, o escárnio. Isto pertence ao terreno da vileza e da estupidez, do qual não faço parte ou frequento. Vossa Senhoria poderá ler Humor literário, sutil, inteligente, precioso, nos meus textos e falas, pois fui profissional do riso por mais de dez anos. Poderá perceber neles severidade, crítica lancinante, radicalidade (do latim radice, raiz, ir às raízes, às causas primeiras, aos fundamentos de um tema ou questão, e não ficar na superficialidade, na sintomatologia), ao contrário da leviandade, porém jamais verá achincalhe, chacota, virulência vã, sem direção ou propósito em minhas manifestações. A exceção, evitável o quanto possível, pode acorrer quando sou, aética, covarde ou estupidamente, agredido, sem motivos ou de maneira asnal, insana, desarrazoada. Em consequência, ajo em legítima defesa. 

Não estou ligado a nenhuma empresa ou grupo, não produzo ou represento nenhuma marca de cachaça. Não sou arauto, assecla, cordeiro ou acólito de fabricante, doutrina ou associação. Por outro lado, ninguém é obrigado a pensar como eu, aplaudir e se solidarizar com os meus julgamentos ou aderir às minhas opiniões. Somente a respeitá-las. Contestar ou calar. Aprovar ou não. Não sou dono da verdade, tenho a posse ou propriedade dela. Apenas procuro estar sempre com ela, próximo dela. Parafraseio uma escritora norte-americana: "A verdade não é uma estação para a qual viajamos. Mas, o modo de viajar". 

Meus caminhos são éticos e profissionais. Meus compromissos são com a Cultura Brasileira e com a Minha Pátria. 

O diálogo, a crítica, a discussão são exercícios férteis, produtivos, enriquecedores. O resto é, intelectualmente, indigente, desprezível, descartável. Muitas vezes, ignóbil, pútrido, abjeto. 

Respeitosa e cordialmente, 

Marcelo Câmara 

 

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PELA VERDADE,
EM DEFESA DE CÂMARA TORRES

 

O portal paraty.com exibiu, durante anos, uma medonha e desataviada matéria intitulada Diuner Melo resgata obra de Samuel Costa, publicada no jornal O Paratiense, de maio de 2001. O texto, de autoria de Lia Capovilla, contem uma série de inverdades, tolices e omissões, ditas ora pelo entrevistado, ora pela entrevistadora, que atingem a honra e a memória de José Augusto da Câmara Torres, bem como a História de Paraty. 

O jornalista e escritor Marcelo Câmara, filho de Câmara Torres, ao tomar conhecimento da matéria, escreveu, em junho de 2008, à editoria do portal, solicitando a sua correção. A princípio, a editora do site, que também é autora da matéria, considerou pertinente o pedido de Marcelo para que as correções fossem feitas e lhe escreveu dizendo que "caso tenha interesse em apresentar seu parecer (sic) sobre o assunto, teremos o maior prazer em publicar".

 

Engano. 

Em julho de 2008, Marcelo enviou carta à editora corrigindo os erros da matéria. Aguardou semanas pela publicação e... nada. Silêncio. No mês seguinte enviou novamente a carta, reiterando a publicação. De novo, o silêncio. Até hoje, a matéria de Marcelo que efetiva o seu "direito de resposta" não foi publicada. 


Como a desatenção e o desrespeito são continuados, quando a carta e o silêncio do portal caminham para o segundo aniversário, Marcelo Câmara, independente de medida judicial que possa vir a tomar, resolve divulgar, abaixo, a censurada carta e enviá-la para todos que conheceram a vida e a trajetória do íntegro e brilhante Homem Público. 

Eis, a seguir, a carta que, finalmente, deixa de ser inédita e restaura a verdade histórica, e o perfil Câmara Torres e Paraty, escrito por Marcelo Câmara, logo após a morte de seu pai. 

 

Rio de Janeiro, 8 de julho de 2008. 

A Senhora Lia Capovilla
Portal paraty.com

Senhora Editora, 

A matéria Diuner Melo resgata obra de Samuel Costa exibida no site possui diversos equívocos, desvios e omissões. 

Inicialmente, vamos aos equívocos, confusões e desvios

1 - José Augusto da Câmara Torres (1917-1998), jornalista, educador, advogado e político, o maior líder comunitário e político de Paraty e do Extremo Sul Fluminense no Século XX, apesar de militar profissionalmente no Jornalismo por mais de vinte anos ininterruptamente, de 1930 (como editor de um jornal, em sua terra natal, quando contava apenas doze anos de idade) até o início da década de 1950 (como secretário e colunista da Folha de Angra) - nunca foi detentor de título de jornal ou proprietário de empresa jornalística em Paraty. Em 1922, quando os artigos de Samuel Costa foram publicados em A Razão, Câmara Torres não morava em Angra dos Reis. Era um menino de quatro anos e vivia em Caicó, RN. Somente em 1942, o jovem José Augusto, ainda acadêmico de Direito, depois de ser aprovado em concursos públicos, com defesa de teses, para Técnico de Educação e para Inspetor Escolar, foi nomeado Chefe da Inspetoria da Primeira Região Escolar, que abrangia Angra dos Reis, Paraty, Rio Claro e Mangaratiba. No final de 1942, Câmara Torres conhece Paraty e publica, no principal jornal do Estado, dois artigos sobre o Município. Câmara Torres somente ingressa na Política em 1954, quando se licencia do cargo de Inspetor Escolar e se elege Deputado Estadual pela primeira vez, cumprindo, a partir de então, sucessivos mandatos até 1970. Portanto, em síntese: Câmara Torres nunca foi dono de jornal em Paraty, muito menos em 1922. E jamais atuou simultaneamente como Chefe da Inspetoria Escolar e Deputado, o que era, e é, além de ilegal, impossível. 

2 - As coleções de jornais antigos de Paraty, em 2001, ano de divulgação da matéria, não estavam em Niterói, mas no Rio de Janeiro desde 1996, com o filho do Doutor Câmara Torres, o jornalista, escritor, editor e consultor cultural Marcelo Câmara. As coleções foram construídas pelo Doutor Mário Moura Brasil do Amaral, e adquiridas pelo Doutor Câmara Torres da filha do primeiro, a Doutora Maria de Lourdes Amaral. Trata-se de um acervo único, valiosíssimo para a História de Paraty, um bem particular, de propriedade e em poder do Doutor Marcelo Câmara, que o guarda, o preserva e, atualmente, nele estuda e pesquisa, servindo-lhe de preciosa fonte para os seus trabalhos como historiador e intelectual que é, interessado na História e na Cultura de Paraty, com vasta produção publicada (vide 
www.ilhaverde.net). Marcelo possui, além do citado acervo, coleções de todos os jornais editados posteriormente em Paraty, dos anos de 1940 até hoje, material reunido por Câmara Torres e por ele próprio. Seguindo recomendação de seu pai, e obediente à sua consciência e responsabilidade, na condição de Cidadão Paratyense, amante e defensor da História e da Cultura de Paraty, Marcelo Câmara pretende doar a Paraty, para fins de digitalização, todos os volumes do antigo acervo, bem como as coleções de jornais dos últimos setenta anos, além dos documentos dos arquivos, dele e de seu pai, sobre a História recente de Paraty - material adquirido, reunido, classificado e conservado por ambos. Isto será feito, ainda por orientação de seu pai, somente quando Paraty possuir uma instituição cultural séria, respeitável, segura, dotada de sistemas de preservação e administração de arquivos, dirigida por profissionais honrados, habilitados e competentes, capazes de gerir, com eficiência e eficácia, todo o material. O desejo, o objetivo de Câmara Torres e de Marcelo Câmara, é que a população de Paraty, estudantes e profissionais, a cidadania sem restrições, toda a sociedade, estudiosos e pesquisadores de toda parte, tenham livre e democrático acesso a esse valiosíssimo acervo histórico e cultural, que, afinal, de direito e com justiça, pertence ao Povo de Paraty, que dele deverá ter a eterna guarda e administração. 

3 - Câmara Torres não "se sentia guardião da história da cidade", como afirma leviana e ironicamente, o entrevistado travestido de "historiador". José Augusto da Câmara Torres, como Samuel Costa e Mário Moura Brasil do Amaral, não apenas "se sentia", mas ele foi, efetiva e indubitavelmente, um guardião da história, da cultura, dos direitos e dos interesses da Cidade, do Município, do Povo de Paraty. Câmara Torres, enquanto viveu e trabalhou em Paraty, foi o mais importante realizador, apoiador, animador da História e da Cultura de Paraty. Como educador de grandes obras, homem de pensamento e cultura, advogado militante por mais de cinquenta anos, político leal e dedicado às comunidades do Município, lutou sempre e foi o mais intrépido e intransigente defensor dos valores, das referências, do patrimônio material e imaterial de Paraty, da memória e da identidade da gente paratyana. As suas realizações e conquistas em favor da História e da Cultura de Paraty estão detalhadas no perfil abaixo. E, também, na matéria intitulada Casa de Cultura Câmara Torres - Povo de Paraty homenageia o seu maior líder no Século XX (Jornal de Paraty, Ano XXI, nº 461, de 24 30 de maio de 2005.) 

Quanto às omissões da matéria

Sobre o livro, então lançado, Paraty no Anno da Independência - Outros Textos e Poemas (Seleção e organização de Diuner Mello), faltou à matéria informar que, pioneiramente, quem "resgatou" a figura, a obra, a vida pública, profissional, política, intelectual e literária de Samuel Costa foi Câmara Torres, que descobriu, elevou e apresentou Samuel Costa às gerações paratyenses que o sucederam. Câmara Torres lançou Samuel Costa para o mundo. Para citar apenas três fatos promovidos por Câmara Torres: 

   - Construiu o Grupo Escolar da cidade denominando-o "Samuel Costa". Na inauguração, a 18 de novembro de 1948, data de aniversário de Samuel Costa, divulgou, numa belíssima oração, a primeira biografia do ilustre paratyense, escrita por ele. 

   - Reuniu, editou e prefaciou, pela primeira vez, em 1973, os sonetos de Samuel Costa, escritos no final da vida do paratyense, de 1928 a 1930. 

   - Como Presidente da Subseção da Ordem dos Advogados - OAB - de Angra dos Reis, criou e instalou, nos anos 1980, a Subseção da OAB de Paraty, dando à nova unidade o nome de Samuel Costa, homenageando-o mais uma vez. 

A primeira e única biografia de Samuel Costa escrita por Câmara Torres está, na íntegra, no livro, objeto da matéria. E a matéria não informa. O livreto com os sonetos de Samuel Costa, editados e prefaciados por Câmara Torres, estão reproduzidos, na íntegra, no livro. E a matéria não informa. 

Era o que me cabia, por honra e dever, corrigir e a informar. 

Agradece, cordialmente, 

Marcelo Câmara

 

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CÂMARA TORRES E PARATY

 

José Augusto da Câmara Torres (1917-1998), jornalista, educador, advogado e político, foi, do Século XX, o mais importante líder político e comunitário de Paraty e do extremo sul fluminense. Em quatro legislaturas consecutivas, e com votações crescentes, de 1954 a 1970, cumpriu mandatos na Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro, representando, prioritariamente, o povo de Paraty, Angra dos Reis, Rio Claro e Mangaratiba. Ocupou, ainda, as Secretarias de Estado do Interior e Justiça e de Serviços Sociais, e foi membro do Conselho Estadual de Educação. Era considerado um dos maiores especialistas e executivos em Educação e um dos mais brilhantes advogados do País, destacadamente nas áreas do Direito Civil e do Direito Constitucional. Na sua carreira política, sempre recebeu votos em todos os municípios fluminenses, porém a sua base eram os municípios de Angra dos Reis e Paraty, onde Câmara Torres militou politicamente por mais de quarenta anos, recebendo dos paratyenses votações maciças, que chegaram a ultrapassar os 90 por cento dos votos válidos. Em toda a história constitucional do País, três deputados representaram Paraty: os dois primeiros foram os paratyenses de nascimento José Luiz Campos do Amaral no Império, e Samuel Costa na primeira República; o último foi o paratyense honorário José Augusto da Câmara Torres. 

Em Paraty, advogou por mais de meio século, trabalhou como Chefe da Inspetoria Regional de Ensino e como Técnico de Educação, sendo o responsável pela instalação e ampliação de toda a rede de educação pública do Município. De 1942 até a sua morte em 1998, ele foi o protagonista das grandes conquistas socioculturais e econômicas de Paraty e da região. Era aposentado como Consultor Técnico Estadual de Educação e como advogado, viúvo da professora Gertrudes Nóbrega da Câmara Torres - a Dona Tudinha - mestra de gerações de angrenses, falecida em 1989. Sua casa, primeiro em Angra, depois em Niterói, sempre foi chamada de "a embaixada de Paraty", aberta aos paratyenses de todas as classes sociais e cores políticas. Na cidade de Paraty, possuía uma casa onde, ele, juntamente com os filhos e netos, conviveu, até os seus últimos dias, com o povo de Paraty. 

Fiel e dedicadíssimo à comunidade paratyense, Câmara Torres, para desespero dos angrenses, dizia que o seu coração "era paratyense", entregando a este Município, com elevada dignidade e correção, mais de cinquenta anos de vida pública. Durante todo esse tempo, não houve iniciativa ou conquista para o povo de Paraty e da região que não contasse com a sua liderança ou participação decisiva. Por isto, Paraty muito lhe deve como educador e político de muitas lutas e grandes realizações. Ergueu e inaugurou, em 1948, o Grupo Escolar Samuel Costa, na sede do município, e, de 1942 a 1953, além de construir toda a rede de educação pública do município, triplicou o número de escolas e de matrículas do ensino fundamental. Criou a merenda escolar em Paraty e em todo o sul do Estado, e participou decisivamente da implantação dos cursos de segundo grau no município e na região. Levou a Educação aos pontos mais distantes de Paraty e de todo o Extremo Sul Fuminense, legislando intensa e continuadamente na Assembleia Legislativa nas áreas da Educação, da Cultura e do Meio Ambiente. Pugnou, com altivez, pela Educação pública, universal e gratuita e pela valorização dos professores. Até a sua morte, foi "o deputado das professoras""o político da educação pública", um batalhador pelo ensino público de qualidade e por condições dignas de trabalho para os profissionais da educação. Por sua obstinada e desvelada dedicação ao povo paratyense, a Imprensa algumas vezes o criticava pejorativamente como sendo "o faz-tudo do povo de Paraty". 

Educação e Cultura

Nascido em Caicó, no Rio Grande do Norte, José Augusto da Câmara Torres chegou a Niterói com 14 anos, já com experiências no jornalismo, revelando-se precocemente um intelectual de talento, orador, ensaísta e líder estudantil católico. Na infância e juventude, fundou e editou jornais e dirigiu instituições culturais em sua terra natal e em Niterói. Foi aluno do Colégio Salesiano Santa Rosa e do Liceu Nilo Peçanha, formando-se pela Faculdade de Direito de Niterói. Lecionou História do Brasil, Língua Portuguesa e Literatura Brasileira e Portuguesa nos Colégios Salesiano, Icaraí e Nossa Senhora das Mercês. Em 1939, foi aprovado em rigoroso concurso público de provas e títulos, quando defendeu tese, escrita e oral, sob o tema Educação Moral e Cívica, sendo nomeado Inspetor Regional de Ensino, e designado, em 1942, para a chefia da 1ª Inspetoria Estadual de Ensino, no extremo sul fluminense, com sede em Angra dos Reis, onde, recém-casado, foi residir. Dois anos depois, é novamente brilhantemente aprovado, também com defesa de tese, oral e escrita, sob o tema A Inspeção Escolar na Escola Primária, em concurso público de provas e títulos para as funções de Técnico de Educação do Estado do Rio de Janeiro. 

Em poucos anos, revoluciona a educação em Paraty e em todo o extremo sul do Estado, construindo e ampliando toda a rede pública de ensino, introduzindo uma moderna gerência de administração escolar, novas técnicas de ensino e metodologias didático-pedagógicas de vanguarda, que valorizavam o professor, as culturas locais e integravam a comunidade à escola. Introduziu a merenda escolar em toda a região, que encontrou com pouco mais de trinta escolas, deixando-a, em 1953, com mais de uma centena de unidades. Triplicou o número de crianças matriculadas na região, de 2 mil para 6 mil estudantes. Promoveu, ainda, um intenso movimento cívico e cultural em Paraty e em todo o litoral sul-fluminense, ajudando, decisivamente, na criação de ginásios, cursos de segundo grau, profissionalizantes e extracurriculares, além da realização de exposições, semanas de estudos pedagógicos, entre outros eventos que marcaram época. Nunca o ensino público atingiu níveis tão altos de qualidade, de proficiência e eficácia em Paraty e em todo o Extremo Sul Fluminense. 

José Augusto da Câmara Torres foi, fundamentalmente, um homem de Cultura. Mais que isto, um homem da Cultura Fluminense, da Cultura Paratyense. Seu curriculum profissional nos apresenta um trabalhador intelectual fértil, produtivo e brilhante: jornalista profissional aos treze anos, liderança estudantil e tribuno desde os quinze, professor aos dezoito, escritor de obra reconhecida aos vinte e dois e técnico de educação aos vinte e quatro anos. Depois, advogado, jurista, político. Câmara Torres não foi apenas um homem de cultura, um homem da Cultura, uma personalidade do Jornalismo, das Letras, do Magistério, da Política, da Advocacia Fluminense. CÂMARA TORRES FOI UM HOMEM DA CULTURA PARATYENSE, um operoso criador, um notável agente que realizou, difundiu e desenvolveu a Cultura da terra de Samuel Costa. Seu espírito humanista, seu trabalho cívico, comunitário e político em favor da Cultura em Paraty, estão em cada rua da cidade, em cada praia, nas matas, lavouras e grotões do município, onde, semeou fé e esperança, plantou escolas, alfabetizou, formou e ensinou cidadania a milhares de crianças e jovens. Cada escola que construiu transformou-se em um centro de realização e promoção cultural, onde a história, o patrimônio, as referências, o homem paratyense eram valorizados e promovidos, em sintonia com a história do Estado e da Nação. 

No Estado do Rio e em Paraty, Câmara Torres empreendeu inúmeras ações culturais, associando-se a instituições e lideranças da terra para atuar como o estudioso, o professor, o administrador, o político, que empreendeu, gerenciou e sustentou inúmeros projetos culturais. Na sua condição de educador e político, idealizou e apoiou muitos eventos, foi um ágil e produtivo animador cultural, um realizador bem sucedido, catalizando interesses, sentimentos e aspirações da gente paratyense, transformando sonhos em obras, em fatos culturais de relevância. Câmara Torres foi um estudioso e um tenaz defensor, como educador, advogado e político, do patrimônio cultural de Paraty. Por mais de cinquenta anos, ele foi o grande incentivador e apoiador das manifestações populares e folclóricas em Paraty, suas festas e celebrações religiosas e profanas. Câmara Torres foi o interlocutor, antes de 1950, do grande Luís da Câmara Cascudo, membro ilustre de sua família, promovendo o diálogo entre o Governo do Estado do Rio de Janeiro e a União, visando aos primeiros apoios e estímulos à pesquisa e aos estudos do Folclore fluminense, que resultaram na criação da Comissão Fluminense do Folclore. Na década de 1960, Câmara Torres trouxe a Paraty o seu amigo e grande folclorista Edson Carneiro, liderando um grupo de pesquisadores de prestígio nacional, para conhecer in loco expressões do Folclore Paratyense, depois registradas em artigos e ensaios editados em revistas especializadas. Em 1960, afirmou-se como o grande apoiador das comemorações dos Trezentos Anos de Paraty, e, também, em 1967, como um dos principais realizadores dos festejos do Tricentenário da Vila de Nossa Senhora dos Remédios de Paraty. Por iniciativa de Câmara Torres, nasceram o brasão e a bandeira do município, criações do seu amigo e famoso heraldista Alberto Lima. Todas as instituições socioculturais e esportivas de Paraty sempre tiveram nele um amigo valioso, um apoiador incansável. 

O seu notável trabalho como Técnico de Educação em Paraty, o seu fecundo munus político de deputado estadual e dirigente partidário, fizeram de Câmara Torres o orador dos grandes eventos, das inesquecíveis efemérides. Foi o grande incentivador dos estudos sobre a História e a Cultura de Paraty, sobre nós mesmos, sobre o nosso lugar, o nosso papel na vida nacional, os fatos e processos acontecidos na terra de Domingos Gonçalves de Abreu. A inauguração de cada uma das dezenas de escolas que construiu em Paraty traduzia-se numa festa cultural, popular, democrática, onde Câmara Torres ministrava uma aula sobre o patrono de cada unidade, convocava os paratyenses para a sua História, para o exercício da cidadania social e política, práticas tecidas na pesquisa, na reflexão e na ação, a partir de Paraty, a partir da sua gente e da sua História. No seu tempo, cada escola de Paraty, era um centro comunitário de atividades culturais, a célula de uma biblioteca e espaço para as atividades artísticas e profissionalizantes. Câmara Torres criou a rotina de trazer personalidades da Cultura Brasileira para falar ao povo, aos estudantes, aos professores. O seu objetivo era estimular o conhecimento e a autoestima dos paratyenses, favorecer a consciência e a responsabilidade sociocultural e política de cada um e de todos. 

A partir de 1942, o tema "Paraty" vai ocupar, prioritária e majoritariamente, a agenda de Câmara Torres, vai habitar toda a sua obra divulgada e publicada, no Jornalismo, na Educação, na Ensaística, na Política. Isto porque, naquele ano, ele visita Paraty pela primeira vez, se apaixona pela terra, e publica em sua coluna Hora Fluminense, em O Estado, de Niterói, o mais importante jornal à época, dois artigos, densos e informativos, tratando da problemática socioeconômica do município, das suas belezas e das potencialidades de Paraty, antevendo-lhe um destino promissor nos campos cultural e turístico. É de sua autoria o primeiro e mais importante perfil biográfico de Samuel Costa, a belíssima e memorável oração que pronunciou quando da inauguração do Grupo Escolar, a 18 de novembro de 1948, na condição de Técnico de Educação e Chefe da Inspetoria Regional de Ensino, no 66º ano de nascimento do ilustre paratyense. Publicou na revista literária Bando, de Natal, Rio Grande do Norte, a única e histórica crônica que narra a morte, em 1944, em Angra dos Reis, do grande Alberto Maranhão, estadista da Primeira República, que após a Revolução de 1930, vive em Paraty, por longos anos, onde fuoi grande fazendeiro, produtor de bananas e dono de jornal. Reuniu e editou, pela primeira vez, em 1973, os poemas de Samuel Costa, escrevendo a introdução à antologia. Também prefaciou as obras Paraty - Caminho do Ouro, de Heitor Gurgel e Edelweiss Amaral, e Silvio Romero, Juiz, de José Alberto da Silva, livro que narra a vida do grande sergipano como "Juiz Municipal do Termo de Paraty", de 1877 a 1879. 

Como jornalista, professor, advogado e político, em toda a sua vida acadêmica e profissional, em mais de setenta anos de ininterrupta atividade intelectual, publicou livros e centenas de artigos e ensaios nas áreas da Literatura, da História, da Educação e do Direito, além de trabalhos nos campos do Folclore, da Sociologia e da Política. Até a sua morte, participou, ativamente, de diversas instituições e movimentos culturais que agitaram Paraty, muitas vezes fundando entidades e dirigindo campanhas comunitárias. 

Doação e serviço

Afora o seu ingente trabalho, por mais de quarenta anos, como líder e arauto das grandes causas da gente paratyana, não há cidadão ou família em Paraty que não reconheça e não deva a Câmara Torres, uma atitude, um empenho, um gesto, pelo menos uma palavra de compreensão e apoio, em defesa de um direito ou benefício pessoal ou coletivo. Em Paraty, os órgãos e os serviços públicos devem muito à ação contínua e persistente de Câmara Torres, tanto na Assembleia Legislativa, como junto a órgãos estaduais, federais e internacionais. Durante o tempo em que foi deputado, viabilizou os governos dos prefeitos de Paraty, municipalidade pobre, sem recursos, prestando-lhes toda a assistência e apoio, para bem e produtivamente desempenharem os seus mandatos. No final da década de 1960, o Projeto Turis, da EMBRATUR, que tratava da ocupação racional e sustentável do litoral do Rio a Santos, teve em Câmara Torres um defensor corajoso e tenaz. O Plano Integrado de Paraty patrocinado pela União Federal, germinado na UNESCO, órgão da ONU, nasceu das idéias e das ações de Câmara Torres em vários fóruns regionais e nacionais nos anos sessenta e setenta, resultado do seu trabalho contínuo pela integração do município ao Estado do Rio e pelo desenvolvimento autossustentável de Paraty. 

Lutou, politicamente, sem pausa, por mais de três décadas, inicialmente pela abertura, depois pela conservação, tráfego regular e pavimentação da estrada Paraty-Cunha. Lutou, incansavelmente, nos níveis estadual e federal, mobilizando até organismos e recursos internacionais, para o asfaltamento da estrada, chegando mesmo a obter compromissos formais de governadores, ministros de Estado e a celebração de contratos entre o Governo do Estado e construtoras, os quais sucessivos governos federais não permitiram que fossem cumpridos. Foi o grande responsável pela abertura da Estrada Angra dos Reis-Paraty e, depois, pela Rodovia Rio-Santos, com outro traçado, é verdade, mais inteligente e preservacionista. Dedicou-se, também, durante toda a sua vida pública, pela manutenção do Serviço de Navegação Sul Fluminense, que oferecia transportes às comunidades da Baía da Ilha Grande. Criticou, durante anos, o funcionamento do presídio na Ilha Grande, que segundo ele, "contrariava as vocações ecológicas e preservacionistas daquele patrimônio, expondo-o a toda sorte de perigos e agressões".

Como parlamentar, atuou e legislou destacadamente na área social, em favor da região que representava, especialmente na Educação, Cultura, Saúde, Saneamento, Transportes, Turismo e Ecologia. Promoveu esforços bem sucedidos para implantação e melhoria dos serviços de saúde, saneamento, energia elétrica, transportes e telecomunicações em Paraty e em toda a região. Planejou e viabilizou, como Secretário do Interior e Justiça, a construção do Fórum Silvio Romero, cujo nome foi dado por ele. Criou a Subseção da Ordem dos Advogados de Paraty, instalou-a no edifício do Fórum, dando-lhe o nome de Samuel Costa. Empenhou-se pela manutenção e melhoria do campo de aviação de Paraty, pois foi um pioneiro do transporte aéreo no extremo sul do Estado, construindo, inclusive, com recursos próprios, o Aeroporto de Angra dos Reis. Idealizou e coordenou, em 1970, a Operação Trindade, primeira ação integrada do Estado no sentido da integração e desenvolvimento socioeconômico sustentado da comunidade da Praia da Trindade. Foi o autor da lei que remunerava e dava tratamento especial aos profissionais da Educação designados para trabalhar nas escolas oceânicas, de difícil acesso de Paraty ~Trindade, Sono e Cajaíba. Irmão e Procurador da Irmandade da Santa Casa de Misericórdia de Paraty, obteve vários melhoramentos para o hospital, e era, também, membro da Associação de Caridade São Vicente de Paulo, que mantém o Asilo de amparo à velhice. 

Cristão e solidário, generoso em todos os seus atos, Câmara Torres jamais deixou de ouvir ou atender qualquer um do povo que o procurasse, fosse ou não seu eleitor ou amigo. Na política, teve adversários, jamais inimigos. Na advocacia, contendores que o admiraram, nunca debatedores odientos. Morreu pobre, sendo visto por correligionários e adversários políticos, como "uma legenda moral de honestidade e trabalho, de doação às causas populares, que fazia dele um homem público por excelência, honrado, leal, destemido e produtivo, com inestimáveis serviços prestados à Paraty e ao Estado do Rio de Janeiro". Os cientistas políticos veem Câmara Torres como "um homem público com uma inexcedível capacidade de doação, um político com uma dimensão humana e social insuperável". Deixou oito filhos, quatorze netos e uma legião de amigos e admiradores no Estado e no País. Entre os seus filhos estão o jornalista, escritor, consultor cultural e consultor legislativo do Senado Federal, aposentado, Marcelo Câmara, considerado um paratyense, tamanha é a sua identidade com a gente e a cultura do lugar. Marcelo Câmara, que sempre desenvolveu intensa e múltipla atividade intelectual, herdou, ainda em vida do pai, a rica biblioteca de Câmara Torres, com importantes e raras obras jurídicas, de História, Educação, Literatura, Ciências Políticas e Sociais, e o seu monumental arquivo profissional e pessoal, onde está registrada toda a sua vida como jornalista, educador, advogado e político, inclusive a sua correspondência com líderes e famílias de Paraty, da região, e com personalidades da vida fluminense e nacional, estas desde os anos vinte até a sua morte. 

Liderança política

Em meados da década de 40, Câmara Torres já era uma vigorosa e irreversível liderança regional. Com a redemocratização do País, em 1945, ingressa no Partido Social Democrático - PSD, e, cinco anos depois, é um dos fundadores e dirigente do Partido Social Progressista - PSP, elegendo-se, por essa legenda deputado estadual em 1954 e, por mais oito anos consecutivos. Funda os diretórios municipais do PSP em Paraty, Angra dos Reis, Rio Claro e Mangaratiba e é eleito Secretário-Geral do partido no Estado do Rio. Em 1958, foi um dos principais articuladores da coligação PSP-PTB-UDN, que levou o amigo e companheiro de lutas políticas, Roberto Silveira, ao Governo do Estado. Em 1959, exerce as funções de Primeiro Secretário da Assembleia Legislativa. No Governo de Geremias de Matos Fontes, ocupa, por alguns meses, a Secretaria de Estado do Interior e da Justiça, onde realiza profícua administração, erguendo fóruns em vários municípios, assistindo e modernizando as prefeituras municipais e revolucionando o sistema penitenciário, com a implantação de projetos pioneiros da educação formal e profissional nos presídios. Em sua gestão, obteve, pela primeira vez, em mais de sessenta anos de tentativas frustradas de tantos governos, a devolução, por parte do então Estado da Guanabara, das áreas, prédios e benfeitorias, onde funcionavam o Presídio do Abraão e a Colônia Penal Dois Rios, na Ilha Grande, não se concretizando a transação, por conta da sua saída da Secretaria, e de sua volta à Assembleia Legislativa. 

Mesmo ingressando na Aliança Renovadora Nacional - ARENA, após o golpe de 1964, lutou, durante o regime militar, contra a instalação da usina nuclear na Praia da Itaorna, em Angra e esteve preso no Colégio Militar, sendo libertado após dez dias de detenção, sem qualquer acusação formal, com um pedido de desculpas do então comandante da unidade. Antes, fora acusado em Inquérito Policial Militar, por ter intervindo em favor da liberdade e integridade de líderes políticos e comunitários de Paraty, uns presos, outros perseguidos pela Ditadura, a maioria deles, naquele momento, seus adversários políticos. Em 1970, foi o único deputado estadual da ARENA a concorrer a uma vaga na Câmara Federal, não logrando êxito, apesar de expressiva votação, o que o colocou numa primeira suplência por quatro anos, levando-o a um longo jejum eleitoral. Em 1971 assumiu a Secretaria de Estado de Serviços Sociais, iniciando um trabalho em várias frentes, de grande repercussão, com projetos de vanguarda dirigidos aos marginalizados, crianças e idosos, aos portadores de deficiência física e mental, apoiados por governos e instituições estrangeiras e internacionais. Isto provocou inveja e intriga em setores do poder, sendo demitido por exigência da chamada "linha dura" do regime que infelicitava o País. Em 1986, após dezesseis anos afastado das disputas eleitorais, amigos de Angra e de Paraty lançam o seu nome à Assembleia Legislativa pelo Partido Democrático Social - PDS. Obtêm 5 mil votos, é o candidato à Assembleia Legislativa mais votado em Paraty. Entretanto, não se elege, abandonando definitivamente a Política. Com sabedoria e prudência, presidiu o PSP, a ARENA e o PDS, de Angra dos Reis. 

Do início dos anos 40 até a década de oitenta, não houve empreendimento público, comunitário ou privado em Paraty e no extremo sul do Estado no qual a competência de Câmara Torres não estivesse presente. Visionário, homem de vanguardas, espírito empreendedor, de convergências e de conciliação, sempre liderou ou, pelo menos, influiu, decisivamente, no progresso de Paraty e de toda a região. Mesmo nas iniciativas privadas, onde o interesse e os direitos do povo da região estiveram em jogo, como a instalação dos Estaleiros Verolme, em Angra dos Reis, ou os grandes projetos turísticos na Costa Verde, lá estava a presença dinâmica e articuladora de Câmara Torres resolvendo, incentivando, apoiando, realizando, sempre zelando pelas comunidades, seus valores, direitos e patrimônios. 

Além de criar e expandir toda a rede de educação pública no sul fluminense, a região lhe deve a edificação das matrizes do seu desenvolvimento socioeconômico, político e cultural, além de conquistas na saúde, nos transportes, no saneamento, na preservação ambiental, no turismo e outras áreas de atuação do Poder Público. Entre aos benefícios regionais alcançados graças ao trabalho incansável de Câmara Torres, além daquelas já apontadas, está a conservação das estradas Paraty-Cunha e Rio Claro-Mangaratiba. Sócio Remido e Vice-Presidente do Aeroclube do Estado do Rio de Janeiro, foi um pioneiro do transporte aéreo no Sul Fluminense, onde realizou os primeiros voos em Angra dos Reis e em Paraty, para acudir a população que precisava de atendimento médico de urgência, favorecendo, também, a ida constantes de servidores e autoridades públicas ao município. 


Jornalista e escritor

Aos onze anos de idade, José Augusto da Câmara Torres já era um jornalista, quando fundou e dirigiu o veículo estudantil O Ideal da Juventude, em sua terra natal. Mais tarde, também fundou e dirigiu, em Niterói, os jornal Espumas, depois denominado A Ordem. Antes, no Colégio Marista, em Natal, colaborou no Sete de Setembro. Jovem, militou politicamente ao lado de Alceu de Amoroso Lima, o Tristão de Athayde, Dayl de Almeida, José Arthur Rios, os irmãos Badger e Roberto Silveira, Celso Peçanha, Anselmo Macieira, Vasconcelos Torres, entre outros. Em Niterói, pertenceu ao Centro de Cultura José de Anchieta, do Colégio Salesiano Santa Rosa, e foi um dos fundadores da Congregação Mariana, presidindo, por vários mandatos, a Academia São Francisco de Sales, braço cultural da Congregação. Escreveu em jornais e revistas, entre eles, Taba, O Gládio e Ariete. Assinou, na década de 40, a coluna Hora Fluminense, espaço nobre na primeira página do diário O Estado, então o maior jornal da Velha Província. Foi redator do antigo Serviço de Propaganda e Turismo do Governo do Estado e da Revista Potiguar, no Rio. Publicou em jornais e revistas do Rio e de Natal. Foi membro da Associação Fluminense de Jornalistas e da Associação de Imprensa Periódica Paulista. Em 1939 e em 1944, respectivamente, circulam, com tiragens restritas, nos meios acadêmicos e técnicos da Educação, as duas monografias, teses de sua autoria, apresentadas em concursos públicos: Educação Moral e Cívica e A Inspeção Escolar na Escola Primária

Aos 22 anos publicou, com Dayl de Almeida, Imortais, livro de ensaios, com prefácio de Alcebíades Delamare. Publicou, ainda, diversos trabalhos de História, Ciência Política, Educação, Folclore e Crítica Literária. Entre esses, destacam-se os estudos pioneiros sobre o paratyense Samuel Costa (1948), já citado, e sobre o angrense Lopes Trovão (1953). Foi um dos fundadores do Instituto Histórico e Artístico de Paraty. Era Membro Correspondente do Ateneu Angrense de Letras e Artes. Integrava a Academia Valenciana de Letras, o Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte, a Associação Brasileira de Escritores, entre outras entidades culturais. Possuía os títulos de Cidadão Paratyense, outorgado em 1960, o primeiro a ser concedido pela Câmara Municipal de Paraty; de Cidadão Fluminense, do antigo Estado do Rio de Janeiro, de Cidadão Honorário do Estado do Rio de Janeiro, do atual Estado do Rio de Janeiro, e de outros cinco outros municípios fluminenses. Foi agraciado com a Medalha do Centenário de Silvio Romero (1939), pelos seus trabalhos sobre o escritor, com a Medalha do Cinquentenário da República, e com a Medalha Tiradentes, da Assembleia Legislativa do atual Estado do Rio de Janeiro, entre dezenas de outras insígnias. Em Angra dos Reis, presidiu a Subseção da OAB e foi eleito pelos seus colegas de profissão "O Advogado do Ano". Pertenceu a entidades religiosas de Paraty e de Angra dos Reis, sendo, também, Benemérito de dezenas de instituições socioculturais, filantrópicas e desportivas. Foi, enfim, um importante e luminoso personagem da Educação, da Cultura, da História Política Fluminense nos últimos sessenta anos do século XX

 

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UM ESCÂNDALO:
NEWTON MENDONÇA FOI LEMBRADO.

 

"Um escândalo! Verdadeiramente um escândalo. Benfazejo e venturoso, no melhor e mais positivo sentido que a exclamação possa ter". Assim, o jornalista e consultor cultural Marcelo Câmara resume a emoção, ao folhear o fascículo da Coleção BRAVO! 50 ANOS DE BOSSA NOVA, Newton Mendonça - O personagem oculto, de André Ciasca, que acompanha a edição de outubro da revista Bravo!. Numa iniciativa pioneira, corajosa, única na mídia brasileira, a revista Bravo! acaba de editar e colocar nas bancas de todo o País, um bem construído e honesto perfil biográfico, jornalístico e crítico, do pianista de vanguarda e genial compositor carioca Newton Mendonça (1927-1960), primeiro e principal parceiro de Tom Jobim, com quem formou a mais importante dupla da Bossa Nova. Marcelo Câmara se diz "honrado e orgulhoso", com o trabalho do jornalista e produtor cultural André Ciasca. Isto porque Ciasca teve como fontes principais: o livro Caminhos cruzados - a vida e a música de Newton Mendonça (Mauad), de Marcelo Câmara; o álbum Caminhos cruzados - Cris Delanno canta Newton Mendonça (Ilha Verde), idealizado e produzido por Câmara; as recentes pesquisas do biógrafo; e as entrevistas que concedeu a Ciasca. Newton Mendonça é o criador, com Tom Jobim, de Desafinado, Samba de uma nota só, Meditação, Discussão, Foi a noite, Só saudade, O domingo azul do mar etc., e de composições exclusivas como Você morreu pra mim, O tempo não desfaz, Verdadeiro amor, O mar apagou, Seu amor, você, Canção do azul, Nuvem, entre outras - qualificadas como obras-primas, hinos e matrizes da Bossa Nova. 

Marcelo Câmara considera a edição do fascículo da revista Bravo! um fato extraordinário, grandioso, de grande significado para a Música Brasileira. Ele explica que "desde a morte de Newton, há quase quarenta e oito anos, somente a Mauad com a edição da biografia em 2001, os meus parcos talentos e recursos, que produziram um CD em 2002 e um show em 2008, e, agora, a revista Bravo! - tiveram a iniciativa, a capacidade e a coragem de realizar projetos sobre a vida e a música do grande artista". Para ele, "o trabalho de André Ciasca é uma resposta altiva e verdadeira à enxurrada de publicações, CDs, programas de rádio e tv, eventos, capengas, falsos e pasteurizados, comemorativos dos 50 anos da Bossa Nova, infortúnios que apenas repetem velhas mentiras, ficções e deformações de uma famigerada 'história oficial da Bossa Nova', que predomina na mídia e numa bibliografia medíocre, plagiária e empulhadora". O crítico parabeniza a Bravo!, saúda e louva a visão e a independência do chefe de redação da revista jornalista João Gabriel de Lima, "quando enfrenta a mediocridade e a farsa generalizadas, construindo com seriedade e excelência". Marcelo Câmara conclui: "Para mim, pesquisador quase solitário e heroico ao insistir, por mais de treze anos, em defender a memória e a arte de Newton Mendonça, após os aplausos, meus e dos leitores, só há uma palavra a ser lançada: BRAVO!

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MARCELO CÂMARA CRITICA

AUSÊNCIA DE NEWTON MENDONÇA
NA COLEÇÃO FOLHA 50 ANOS DE BOSSA NOVA

 

Marcelo Câmara escreve à editora que produziu a Coleção Folha 50 anos de Bossa Nova (livreto e CD) e ao jornal Folha de São Paulo para lamentar a ausência, entre os artistas selecionados, do pianista e compositor Newton Mendonça (1927-1960). A Coleção foi lançada no dia 10 de agosto de 2008 e é vendida todos os domingos nas bancas. Marcelo Câmara faz severa crítica aos critérios de seleção dos eleitos, apontando o erro como mais um golpe da famigerada "história oficial da Bossa Nova" contra a Música Popular Brasileira. A editora, depois de entrar em contato com o planejamento e redação da Coleção, informou a Marcelo Câmara que o profissional responsável pela Coleção "também tem enorme respeito e admiração por Newton Mendonça, mas a Folha privilegiou os intérpretes da Bossa Nova e Newton Mendonça não é interprete e sim compositor". O editor acrescentou: "Se notar, em vários discos foi feita a escolha de musicas em que Newton é o Autor, exatamente pra realçar sua veia de Bossa Nova e não deixar passar esse grande compositor despercebido". Diante da injustificável resposta, Marcelo Câmara enviou outro e conclusivo protesto à editora. 

Abaixo os textos das duas cartas enviadas por Marcelo Câmara. 

Rio de Janeiro, 11 de agosto de 2008. 

À Editora Mediafashion 

À Folha de São Paulo 

Senhores, 

Saúdo o lançamento da Coleção Folha 50 anos de Bossa Nova, lamentando a grave e injustificável ausência do mais importante artista do gênero: o pianista revolucionário e compositor de vanguarda Newton Mendonça (1927-1960). Compositor que nos deixou 35 músicas (17 de criação exclusiva, 15 com Tom Jobim e 1 com Fernando Lobo), Newton foi, ao lado de Johnny Alf e Tom Jobim (e acima desses dois), o criador por excelência da nova estética. Dos três, o principal compositor inovador no terreno composicional, estrutural (melodia, harmonia e ritmo), o de maior lastro, consciência e consistência artística, que significou a verdadeira vanguarda, a ousadia, a ruptura, a novidade na Música Popular Brasileira que, antes de todos, anunciou e, depois, fundamentou e inaugurou a Bossa Nova. João Gilberto é a revolução no campo da criação rítmica e interpretativa, criador da batida que sistematizou e interpretou a demanda estética dispersa no Rio da época. João personifica, é o arauto da nova música. Já Newton Mendonça é a criação feita Bossa Nova. Além de ser o criador de uma obra bossa nova em essência, exclusiva, sem parceria, ele concebeu (e trabalhou com Tom) as idéias musicais, é o melodista, dos hinos e matrizes do novo samba, compostos pela dupla New-Tom, a mais importante da Bossa Nova (Desafinado, Samba de uma nota só, Meditação, Discussão, Foi a noite, Só saudade, O domingo azul do mar). Newton criou, sozinho, no inverno de 1954, a música e a letra da primeira parte do Samba de uma nota só, a obra-síntese, a bomba estética da Bossa Nova, sua principal matriz e hino. E fez com Tom a segunda parte, quatro anos depois. Newton é, ainda, o autor exclusivo da música de Meditação. A lista dos artistas da coleção elegeu letristas e até intérpretes, omitindo o mais importante, seminal, a verdadeira vanguarda da Música Popular Brasileira na década de 1950: o menino pobre, órfão e tímido nascido no Cachambi, Newton Ferreira de Mendonça, que se transformou no mais ipanemense dos compositores brasileiros. A iniciativa da coleção, louvável como disse, ao ignorar Newton Mendonça, avilta-se, enodoa-se, apresenta-se como mais um golpe solerte e ignóbil de uma infame e prevalecente "história oficial da Bossa Nova", que domina a mídia e a bibliografia, repleta de invencionices, ficções, deformações e mentiras, e que, há 48 anos, reduz, corrompe ou elimina o nome, a obra, a memória, o legado de Newton Mendonça, e de outros grandes criadores, entronizando falsas vanguardas e mitificando acólitos, personagens apenas participantes ou secundários do gênero. Cordialmente, Marcelo Câmara

Rio de Janeiro, 23 de agosto de 2008. 

Senhor Editor, 

A explicação não se justifica e prova que a coleção foi mal planejada e realizada. Se a coleção é constituída dos maiores intérpretes da Bossa Nova, João Gilberto, o maior e o mais importante de todos, não poderia estar de fora. Da mesma forma o Tamba Trio, o Bossa Três, o Copa Sete, Sérgio Mendes e Zimbo Trio. Além disto, Vinicius nunca foi intérprete de Bossa Nova, e outros o foram mínima e esporadicamente, como Maysa, uma cantora de canções e sambas-canções. E Simonal não foi um cantor que privilegiou ou cantou mais Bossa Nova do que sambas-canções, boleros e música norte-americana. Além disto, o nome de Newton Mendonça, grande intérprete da Bossa Nova, que não deixou gravações, mas as maiores criações do gênero, não é, ao menos, citado no texto dedicado a Tom Jobim e em nenhum dos outros textos da Coleção. Por tudo isto a coleção é pobre e defeituosa. Sei que você não é o profissional que estabeleceu os seus tortos e equivocados critérios. Entretanto, você e a sua empresa não podem se eximir da responsabilidade, pois, certamente bem intencionados, são os produtores do canhestro e infeliz empreendimento. Cordialmente, Marcelo Câmara

 

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UMA POLÊMICA IMPOSSÍVEL:
MARCELO CÂMARA X REVISTA HISTÓRIA DA BN 

 

 

Não deu outra. A Revista História da Biblioteca Nacional publicou, parcialmente, em sua edição nº 33, de junho de 2008, o texto Fantasia não eliminada que Marcelo Câmara enviou ao Editor em fevereiro último. Entretanto, além de editar o que dele quis, divulgou, na revista e no site da revista, uma inqualificável resposta, tola, diversionista e fugitiva dos autoproclamados "historiadores", Luciano Figueiredo e Marcelo Scarrone. Sem conhecer o trabalho intelectual de Marcelo Câmara, e nenhuma história da cachaça, tentam desqualificá-lo acusando-o de "não ser historiador". Diplomado. Segundo eles, Marcelo, formado em Direito e em Comunicação Social, não lê, não pesquisa, não publica História. Por não ser bacharel em História, não poderia fazer História. Não sabem que Marcelo Câmara produz e publica História há quarenta anos, não apenas no terreno da cachaça, mas também da Música, da Política, da Cultura, da Educação, entre outros. Que foi editado por historiadores como Darcy Ribeiro, Emmanuel de Bragança Macedo Soares, Alípio Mendes, respeitáveis historiadores brasileiros, entre outros, todos sem diploma. Mas, para os dois, "istoriadô só com diproma". Ilustres historiadores brasileiros e estrangeiros, do passado e contemporâneos, não tiveram formação específica em História e nem por isto deixam de ser historiadores. A dupla cita fontes secundárias, suplementares, acessórias, relativas e não fundamentais, não seminais, no que se refere à história da cachaça. E livro recente de um deles, sem nenhuma importância ou interesse, apenas oportunista, que nada acrescenta à pequena, erudita e preciosíssima bibliografia existente, onde Câmara Cascudo e Gilberto Freyre pontificam como raros mestres e descobridores. Fontes de inteligência e interpretação valiosas, específicas, do universo da cachaça são, é claro, totalmente desconhecidas dos curiosos. As fontes a que referem apresentam-se ora como periféricas ou peremptas, ora ultrapassadas em significado ou quilometricamente vencidas por outras mais relevantes. A incipiente resposta dos indigitados apresenta-se como uma redação ginasiana, palavrosa e empulhativa: cheia de contornos, fugas, variantes, arabescos. Diante de tanta asneira, presunção, escapismo e arrogância, Marcelo Câmara não teve outra alternativa se não remeter àqueles "especialistas" a mensagem abaixo. Desta vez, conclusiva e cabal, espera. E, claro, não publicada. 

Senhor Editor,

Como previa, e infelizmente, a mensagem Há cartas que não se publicam permanece válida e atual. A Revista levou três meses para publicar uma crítica e quando o faz, edita, mutila, esvazia, no papel, o meu texto, de acordo com a sua conveniência, e escreve o que quer, uma resposta bisonha, não considerável. Constrói uma falsa polêmica, inexistente. Um diálogo desigual e covarde. Com os dedos no teclado do computador, o Editor faz o que quer: publica o que lhe julga favorável, e ignora, finge-se de desentendido, corrompe, deforma a crítica que é dirigida ao veículo. Faz o que quer com o texto do leitor-Autor. Aliás, um Autor sem obra, segundo a Revista. A "resposta" da Revista nada responde, apenas desvia, tergiversa, dissimula e não enfrenta a minha crítica. A referência a Gabriel Soares de Souza pelo Editor nada contrapõe ou esclarece. Dizer que o consumo da cachaça a partir do Século XVI tinha o sentido "medicinal" é tolice desmesurada, lulesca. O uso medicinal da cachaça é suplementar e circunstancial ao consumo popularmente generalizado de uma bebida alcoólica, que inebria, sublima, liberta, embriaga, entorpece, dá prazer. Remedia, salva, alegra, deprime, habitua, vicia e mata, de acordo com a qualidade, a quantidade, a frequência e a situação na qual é ingerida.

 

Minas não tem e nunca teve tradição no fabrico da cachaça comparada a centros de excelência e tradição como Paraty e alguns pontos de antanho do Nordeste, ou ao volume de produção como São Gonçalo e Campos (RJ), São Paulo e Bahia, este o maior produtor e exportador por mais de três séculos. A história mineira da cachaça é de consumo, exclusivamente de consumo de produtos oriundos de centros produtores como o Nordeste e, principalmente, a Bahia. E isto somente a partir do final do Século XVII. Minas só fabrica cachaça 250 anos depois de São Paulo, Paraty, Rio de Janeiro, Bahia e Pernambuco. Cem anos depois do Espírito Santo e de Santa Catarina. Quando falo em tradição não descarto Excelência Sensorial, qualidade superior. São conceitos xifópagos. Falar de tradição mineira no fabrico de cachaça de excelência seria como exaltar a tradição potiguar de saber preparar churrasco bovino. Isto não quer dizer que o potiguar não faça churrasco. Paraty (não existe "parati" no contexto e neste momento) não "tem lugar assegurado na história". Não. A afirmativa é como dizer que "Pelé tem lugar assegurado na história do futebol". Sem comentários. Ela é digna de quem nada conhece sobre o tema. Enfim, não vale polemizar sobre a falta de divergências, sobre o inexistente, quando um assevera e o outro burla ou escapa, deserto de argumentação. A troca de idéias também não é factível. Com a permuta, eu teria um grande prejuízo: eu entraria com o conhecimento, com as idéias, com a crítica fundamentada, e o Editor com os jargões, as digressões sem propósito, com o vácuo. Não há polêmica quando não há divergência ou confronto.

 

Enfim, "anacronismo", esterilidade, perda de tempo, é um especialista com estudo e ciência em determinado universo debater com neófitos interessados, curiosos do mês e pesquisadores de ocasião. Esse tipo de crítica pressupõe conhecimento e deve ser feito em ambiente acadêmico. No mínimo, com equivalência entre os interlocutores. A resposta da Revista à minha carta ratifica: Cachaça é bebida de milhões e assunto para poucos. Cordialmente, Marcelo Câmara.

 

Carta de Marcelo Câmara corrige Revista de História da BN.
E não é publicada.

 

Revista História da Biblioteca Nacional, em sua edição nº 30, de março de 2008, não publicou a carta que Marcelo Câmara enviou corrigindo os erros, desvios e imprecisões da matéria A pinga que pingava, publicada na edição de fevereiro de 2008. O jornalista e escritor afirma que não se surpreendeu com a atitude da revista: “Ignorar e censurar a crítica fundamentada de um leitor qualificado é um comportamento normal, esperado, de quase todos os veículos da Imprensa brasileira. Seria um gol ético contra a sua soberbia e fragilidade editorial”, comenta. Eis a íntegra do texto que a revista não teve seriedade nem segurança para publicar:

Rio de Janeiro, 14 de fevereiro de 2008.

À Revista História da Biblioteca Nacional


Fantasia não eliminada

por Marcelo Câmara*

 

Na matéria A pinga que não pingava, de Luciano Figueiredo e Marcello Scarrone, in Cadê a história que estava aqui (Edição nº 29, fev. 2008), a fantasia, a ficção foi apontada mas, não de todo, desmascarada, demolida, eliminada. A baboseira intitulada A origem da cachaçaatribuída ao Museu do Homem do Nordeste, da Fundação Joaquim Nabuco (Gilberto Freyre e Mario Souto Maior estão revirando-se nas sepulturas...), circula em arquivo anexado a mensagens na Internet há alguns anos. Ainda não consegui descobrir qual inventivo e desocupado indivíduo construiu tanta asneira. Localizei, sim, o web designer que colocou imagem e som na falsa narrativa. Este, por sua vez, desconcertado, comigo desculpou-se, prometeu denunciar o erro ao redator do indigitado texto, mas não me informou o nome do criador da medonha estória. Tudo é ficção tola e inservível, fantasia para encantar, para enganar curiosos, gente interessada, até bem intencionada. A versão não tem fato, documento ou testemunha de onde pode originar-se. E não passa disto. Exaure-se em si mesmo, isto é, na sua própria inconsistência, em nada. Nenhum fundamento histórico ou científico. Nenhuma palavra, linha ou ideia se aproveita no tal arquivo que circula nos computadores. Por outro lado, a matéria da Revista é falha, não é conclusiva e desinforma, porque:

 

1º) Portugueses, e outros povos, fabricavam, sim, aguardentes, mas jamais “cachaça”, o destilado do mosto fermentado do caldo, do melado, da rapadura ou do melaço da cana-de-açúcar (hoje, por lei, “cachaça” é apenas o destilado do mosto fermentado do caldo da cana-de-açúcar). O texto indecente que circula na Internet intitula-se A origem da cachaça (sic) e não da aguardente. Bebida da espécie “destilado” e pertencente à categoria das “aguardentes”, a Cachaça foi inventada no Brasil entre 1533 e 1534 pelo colonizador Martim Afonso de Souza e seus quatro sócios (três lusos e um holandês), em plena Mata Atlântica, nos três primeiros engenhos de açúcar construídos pelos cinco no Brasil (as primeiras indústrias do País), em São Vicente (hoje o local pertence a Santos): Madre de Deus, Santo Antônio e São Jorge, este conhecido, também como "dos Erasmos" ou "do Governador", único do qual restam ruínas. Martim Afonso trouxe o primeiro alambique para a terra recém-descoberta, engenhoca utilizada na Península Ibérica desde o início da Idade Média, e destilou a cana, cujas primeiras mudas chegaram à nova terra pelas mãos de Gonçalo Coelho em 1502.

 

2º) Antonil, no clássico Cultura e Opulência do Brasil, descreve, passo a passo, o fabrico seiscentista e primitivo do açúcar, mas em nenhum momento trata de “cachaça” na acepção que temos, para designar a bebida nacional, que conhecemos e amamos. Ele emprega o termo para designar outra bebida, ou melhor um subproduto, um resíduo descartável do processo de fabricação do açúcar. Quando ele escreve “cachaça” está se referindo à escuma (espuma) eliminável, descartável, da primeira fervura do caldo no início do processo. E por que ele usa “cachaça”? Porque “cachaça”, apesar de ser uma palavra da língua portuguesa, termo generalizado na fala do povo do Brasil na segunda metade do Setecentos, não obstante um termo que denomina a bebida nacional, mesmo sendo uma criação linguístico-cultural genuína e absolutamente brasileira, brasílica – origina-se do espanhol “cachaza” que, na Península Ibérica, designava uma “bagaceira popular ou de baixa qualidade”. Sites e arquivos habitam a Internet oferecendo outras versões fantasiosas sobre a origem da palavra “cachaça”, todas ineptas. Os colonizadores e os primeiros brasileiros importaram a palavra e sua semântica para designar algo inferior, desprezível, no caso a escuma da primeira fervura que era dada às animálias. Observe-se que a palavra “cachaça” antes de denominar a nossa emblemática bebida, um símbolo nacional, serviu para chamar o lixo, o resto, a sobra. Compreenda-se a origem espúria que lhe foi dada através da diacronia da palavra. “Cachaza” nasceu e era usada no Velho Mundo, e depois foi aplicada aqui, para designar um produto inferior, pobre, subalternizado na cadeia industrial e na escala de valoração cultural. Eis uma das raízes, uma das causas histórico-culturais de discriminação, pré-conceituação, criminalização e patologização da cachaça na nossa sociedade. Antonil emprega fartamente melmel de canamelesgarapameladoaçúcarágua ardente (a nossa cachaça, palavra composta, escrita sem aglutinação) e nomes de outros produtos e subprodutos da indústria açucareira, para descrever processos e regimes, explicar fabricos, registrar produção e comércio. Porém “cachaça” ele escreve apenas e tão somente para denominar essa escuma residual, não alcoólica, destinada aos currais, jamais no sentido e na aplicação que foi generalizada a partir do Século XVIII e que temos hoje. Para não dizer que Antonil foi absolutamente coerente em toda a sua obra nesse mister, uma única vez ele escreve “cachaça” para não se referir a tal escuma, mas, sim, à “cachaça azeda” ou garapa azeda ou garapa doida ou cerveja de cana, que é o que conhecemos como mostomucungo ou quira, isto é, o caldo fermentado da cana-de-açúcar, que tem em torno de 12% de álcool ao volume a 20o Celsius. Entretanto, ainda não temos a “água ardente” com o nome de “cachaça”, referenciada por Antonil, resultado do ato de “estilar” (destilar) de que nos fala o jesuíta italiano.

 

3º) Demolindo o estapafúrdio texto que circula na Internet: “Pinga”, palavra já empregada muitas vezes por Antonil, antes dele já designava “porção ou parcela mínima de líquido que escorria, que gotejava, gota, gole, trago”, não só do caldo da cana ou de seus derivados, mas de qualquer líquido, alcoólico ou não. “Pinga” como sinônimo de cachaça aparece na fala do povo e nos documentos dos escrivães e cronistas desde a invenção da cachaça. Diz-se “pinga” porque pingava, e pinga, escorre, goteja, na ponta do alambique, e não do telhado, das ripas de senzala alguma, pois em senzala nunca se fabricou melado, açúcar, muito menos cachaça. O composto “Aguardente” ou “água ardente” é palavra medieval, pretérita ao surgimento da cachaça, porque já existiam outras aguardentes, como a bagaceira, o korn, o schnapps, a vodca, o gim, a genebra, a aquavita, o quirche, a cidra, o poteen, o arac, o uísque e as aguardentes vínicas como o conhaque, o armanhaque, o brandy, o ouzo, a mastika, o pisco e outras, antes da bebida brasileira. Portanto a origem da palavra “aguardente” nada tem a ver com açoite de escravos com lombo molhado de cachaça. Pura fantasia inverossímil, implausível.

 

4º) “Cachaça” e “garapa” são termos falados e escritos no Brasil, em várias acepções, desde o Século XVI, a partir das atividades dos primeiros engenhos e da invenção da bebida. A palavra “cachaça”, a nossa aguardente de cana-de-açúcar, não começa a circular apenas “até a terceira década do século XVII, quando surgem as primeiras notícias da aguardente da cana-de-açúcar destilada em alambiques”, como afirma, equivocadamente, o artigo. Encontramos a palavra “cachaça” escrita designando a nossa aguardente de cana-de-açúcar, no início do século XVII nos Anais da Câmara de Salvador, Bahia. Antes disto, Gabriel Soares de Sousa, no seu Tratado Descritivo do Brasil em 1587, registra uma “casa de cozer meles com muita fábrica” também na Bahia, onde se produzia açúcar, melado, rapadura e cachaça. Outrossim, aguardente de cana-de-açúcar só poderia ser destilada em alambiques e não por qualquer outro processo. Ademais, “agoa ardente”, “água ardente”, “aguardente” sempre foi dito e escrito desde o Descobrimento. “Aguardente da terra” em oposição à “aguardente do reino” ou “aguardente de fora” antecedeu à “geribita da terra” ou ”giribita da terra” (ou jeribita ou jiribita... existem diversas outras formas) com a mesma antítese, ainda no Século XVII, é verdade. Antes de aguardentegeribita e cachaça, mais precisamente nos séculos XVI e XVII, muito mais se falou e se escreveu mel de canavinho de canavinho de melvinho de mel de cana.

 

5ª) Outra conclusão vesga do artigo da revista: Tomás Antônio Gonzaga não criou expressão “cachaça ardente”. Quando nos versos da 5ª Carta , da obra Cartas Chilenas (1788-9) – “Pois a cachaça ardente que o alegra, / Lhe tira as forças dos robustos membros” – o bardo mineiro não criou neologismo ou sinonímia alguma para a cachaça. Apenas expressou-se poeticamente, sem metáfora, adjetivando sem originalidade a bebida, repetindo um julgamento comum e indestrutível: Cachaça é uma água ardente saborosa, que arde, que queima prazerosamente, pelo volume de álcool que contém e pela sua acidez natural e necessária, e que, entretanto, desce macia, sem queimar, deliciosamente pela garganta e esôfago até o estômago. Gonzaga antecipa-se ao comerciante inglês John Luccock que publica em Londres, em 1818, o que viveu no Brasil dez anos antes: “Provei e adorei as águas de fogo de Paraty”. A cachaça não apenas esquenta o corpo e o espírito, provoca “sensação de calor” como informa o artigo. Antes de aquecer o corpo e o coração, antes de alimentar a alma, cachaça, na boca, quando inunda a boca, arde realmente. E assim deve ser. E essa doce e orgástica ardência é uma das suas mais sublimes e misteriosas virtudes.

 

6ª) A cachaça Anísio Santiago (ex- Havana), de Salinas, MG, não é uma das mais antigas e tradicionais do Brasil. Quem escreveu isto sabe de cachaça tanto quanto o sertanejo de Bebe-Mijo, no Piauí, sabe de esqui no gelo. Leitura de mídia superficial, errônea e leviana. Para uma bebida que está fazendo 475 anos de vida, uma cachaça de quatro, cinco décadas não significa coisa alguma. Além de não ser cachaça mas apenas uma cachaça mal envelhecida, filha de uma desconhecida cachaça ruim - a Anísio Santiago não possui Excelência Sensorial alguma. Trata-se de bebida apenas ingerível por quem conhece cachaça, mas nunca saborosa, com qualidade sensorial superior. Minas consome cachaça desde a descoberta do ouro, porém fabrica há menos dois séculos. Salinas, por outro lado, não tem cachaça nem tradição. Produz, há algumas décadas, e em quantidade, cachaça envelhecida de má qualidade, tingidas em madeiras agressivas, oriundas de pingas ruins que não chegam ao mercado, que são escondidas pelos seus fabricantes. Se a Revista quisesse ilustrar o texto com algum rótulo deveria fazê-lo com o de alguma cachaça de Paraty, RJ, o mais antigo centro produtor de cachaça do mundo, que exibe mais de quatrocentos anos de tradição, ciência, arte, excelência na fabricação de cachaça. A Coqueiro e a Corisco, ambas de Paraty, por exemplo, as melhores cachaças que existem, são feitas por famílias que produzem cachaça, no mínimo, há mais de duzentos anos, ininterruptamente, de pai para filho. Sabedoria e mestria entre gerações.

 

A Revista já havia publicado, em 2006, artigo sobre a cachaça prenhe de equívocos e imprecisões de toda ordem. A brasileiraCachaça é desejo de bilhões de terráqueos, bebida de milhões de consumidores, curiosidade de milhares de habitantes, interesse de centenas de intelectuais. Mas assunto para muito poucos.

Cordialmente,


Marcelo Câmara

 

(*) MARCELO Nóbrega da CÂMARA Torres, 58, jornalista, escritor, editor e consultor cultural. Cachaçólogo, é autor de Cachaças bebendo e aprendendo – Guia prático de degustação / drinking and learning – Practical guide to tasting (Mauad, 2006), primeiro e único livro de degustação de cachaças, e de Cachaça – Prazer Brasileiro (Mauad, 2004), primeira obra dirigida ao mercado, ao consumidor real e potencial da bebida nacional. Pingófilo por mais de cinquenta anos, foi o primeiro degustador de cachaças a se profissionalizar, exercendo o ofício de 1994 a 2007. 

 

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MARCELO CÂMARA ASSINA

A PRIMEIRA PÁGINA DO PALADAR, DO ESTADÃO

 

Marcelo Câmara foi o autor do texto de abertura da edição nº 100, do Caderno Paladar, Especial sobre Cachaça, do jornal O Estado de São Paulo , que circulou a 16 de agosto de 2007. Abaixo, o texto na sua versão original.

Cachaça: sabor da alma brasileira

No princípio era a cana, o açúcar, o melado, a rapadura e o melaço. E, no alambique, destilou-se o mosto fermentado. E nasceu o vinho de mel de cana, aguardente da terra, vinho da terra, jeribita da terra. A excelência foi chamada de paraty, um destilado superior e mais caro, feito na cidade do mesmo nome. Finalmente Cachaça, do espanhol cachaza, bagaceira popular. Depois, pinga, cana, caninha. Bebida dos mestiços, negros e índios, dos brancos, dos primeiros brasileiros. Bebida do povo. Farta e barata. Libertária, democrática. “Alimento”, oferenda, estimulante, moeda, mercadoria, meio de escambo, cobiçado butim, produto de exportação – a Cachaça, nos seus engenhos, explora o território, coloniza, conquista, finca a cruz, marca fronteiras, funda vilas, sustenta ciclos econômicos, umedece toda a nossa História, os caminhos e as lutas do Povo Brasileiro. Transforma-se em símbolo da Independência, da Soberania, da Nacionalidade. Encharca a Cultura Nacional, o sonho, o culto, a mesa, a festa. Inebria a música, o canto, a dança, o drama, o rito. Conspira, celebra, motiva, comemora, cura, consola. É tema, motor, elemento, moldura, ornamento.

Perseguida, proibida e contrabandeada, discriminada e incriminada – a Cachaça resistiu a tudo, venceu a todos. Foram 124 anos de proibição legal da produção, comércio e consumo da cachaça: de 1635 a 1759. Paulista, inventada em São Vicente, junto com o Brasil, ela está completando 474 anos de vida. A sua alma é a mesma do Povo Brasileiro: feita de suor, sonho, alegria, mística, sensualidade e beleza. Cruzou regimes políticos e sistemas de governo, driblou a intolerância, o medo e a censura, ultrapassou os planos econômicos, disputou mercados, ganhou devotos, impôs-se pura, verdadeira, límpida, transparente, solar, com o seu telúrico e tropical aroma, a sua deliciosa e sensual ardência. 

25 mil produtores fazem 300 milhões de litros de Cachaça artesanal, destilada em alambiques, em bateladas, seguindo um regime e um tempo de produção no ritmo da vida, onde os processos e técnicas são naturais e uma tecnologia secular, aliada à sensibilidade, à vocação e ao talento, determinam a qualidade, rumo à Excelência Sensorial. Outras 5 mil empresas, com equipamentos automatizados, fabricam 1 bilhão de litros de Cachaça industrial, em destiladores contínuos, de coluna, milhares de litros por minuto, com controle e intervenção sobre a estrutura físico-químico da bebida, visando à padronização. 

Cachaça é a bebida que pinga na ponta do alambique, branca, nova e fresca, no máximo descansada em madeira quase neutra, Cachaça com cheiro de cana, somente cana, e nada mais, lembrando rapadura e melado. Cachaça envelhecida não é Cachaça. Cachaça envelhecida é Cachaça envelhecida, outra bebida. Ela foi alterada nas suas características sensoriais pela madeira, que temperou a sua cor, o aroma e o sabor. Mas a sua alma não pode ser violentada, corrompida a sua natureza, que é de cana, cana e cana, elemento que deve continuar prevalecendo.

A Cachaça reina como nome típico e exclusivo da bebida nacional, única, feita no Brasil, com graduação alcoólica de 38 a 48 por cento e características sensoriais peculiaríssimas. Uma moderna e rigorosa legislação busca garantir a identidade, o caráter e o padrão da Cachaça nos mercados interno e internacional. A produção anual é de 1,3 bilhão, gerando 900 mil empregos e 600 milhões de dólares. 125 mil hectares de lavouras de cana-de-açúcar abastecem milhares de destilarias e engenhos. Exportamos menos de 1%, 12 milhões de litros. São Paulo é o maior produtor, Minas Gerais o maior fabricante artesanal. Paraty, o centro de excelência, que transmite alquimia – ciência e arte – entre gerações há mais de 400 anos, fabricando a melhor Cachaça do mundo. Todos os Estados produzem Cachaça. 6 mil marcas estão num mercado com 900 mil pontos de venda. 

Com aroma fascinante, sabor rústico, a Cachaça de excelência exibe virtudes insuperáveis. Nenhum destilado do mundo possui a exuberância sensorial da Cachaça. Pura ou como base fundamental e insubstituível na Caipirinha, nas batidas e drinques – a Cachaça é como uma grande paixão: forte, poderosa, absoluta, devastadora. E, ao mesmo tempo, bem-aventurada, benfazeja, necessária, prazerosa. 

Genuinamente brasileira, é a segunda bebida mais consumida no País, o primeiro destilado. Cada brasileiro bebe 11 litros de Cachaça por ano. Uma população, na sua imensa maioria pobre, urbana e rural, consome 900 milhões de litros. A classe média e as elites, que sempre beberam Cachaça com pudor e eventualmente, começam a descobrir a Cachaça, o que ela tem a ver com a nossa identidade. Só se ama e se deseja o que se conhece. 

A edição nº 100 do Paladar quer brindar com você, leitor, o vigor e o sucesso da Cachaça, um dos mais importantes produtos da nossa economia, uma das mais belas e caras expressões da Cultura Brasileira, um símbolo da brasilidade, que, no mundo, representa a nossa alma, o talento, a arte e a alegria da nossa Gente. 

Leia com prazer. Deguste. Afetuosamente.
É simples como viver e amar.
E só se aprende fazendo. 
Saúde!


Marcelo Câmara

Cachaçólogo, pingófilo e degustador profissional de Cachaças.
Autor dos livros: Cachaças bebendo e aprendendo – Guia prático de degustação e
Cachaça – Prazer Brasileiro, ambos da Mauad Editora.

 

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Para você entender

 

A INDICAÇÃO DE PROCEDÊNCIA
DA CACHAÇA DE PARATY

 

Marcelo Câmara

 

 

Muita gente não entendeu bem o que aconteceu no último dia 8 de maio no Rio de Janeiro, quando a Associação dos Produtores e Amigos da Cachaça de Paraty – APACAP – recebeu do Instituto Nacional da Propriedade Industrial – INPI – o Certificado de Indicação Geográfica, na modalidade Indicação de Procedência, da Cachaça de Paraty. Os meios de comunicação vêm reproduzindo erros e imprecisões, palpites de oportunólogos, de especialistas de ocasião, de pessoas pouco informadas sobre o assunto. E pior: bebedores que nunca reconheceram a superioridade da Cachaça de Paraty, mas, ao contrário, sempre a denegriram, e, agora, posam de “profundos conhecedores das pingas de Paraty”, prosélitos do que nunca acreditaram. Afirma-se que “a Indicação de Procedência da Cachaça de Paraty equivale as Denominações de Origem cognac e champagne, na França”. Não é verdade, não é isto.

 

Paratyense, na condição de estudioso, de divulgador e defensor, quase que solitário, por mais de cinquenta anos, da excelência e primazia da Cachaça de Paraty, autor de dois livros de vanguarda e de mais de uma centena de trabalhos publicados sobre a bebida brasileira, onde elevo a Cachaça de Paraty, e, ainda, apesar de não ter sido convidado para a cerimônia de entrega do Certificado, nem ao menos avisado sobre o evento – sinto-me participante dessa conquista. Além desse meu trabalho ininterrupto de estudo e de realizações por meio século em favor da Cachaça de Paraty, distinguindo a sua primazia e excelência, lembro-me de que, nos anos de 1998 e 1999, dialoguei muito com Casé Miranda, jovem que se iniciava no universo da cachaça, como sócio do saudoso Príncipe Dom João de Orleans e Bragança, na fabricação da Maré Alta. Insistia com ele e com os mestres alambiqueiros Eduardo Mello (Coqueiro) e Aníbal Gama (Corisco), meus amigos de infância, que a revitalização e afirmação da Agroindústria da Cachaça em Paraty começaria com a organização dos produtores, com a criação de uma entidade classista que os reunisse em torno de idéias, interesses, objetivos e propostas pela recuperação e desenvolvimento do setor. Argumentava que o Estado, paternalisticamente, não cederia ou concederia nada à cachaça. Tudo teria de ser conquistado com bandeiras e luta. A entidade seria indispensável, fundamental, seria o primeiro passo, antes de se falar em aumento da produção e da produtividade, padrão de excelência, incentivos, exportação etc. Conversei bastante com eles sobre o belo exemplo de Minas Gerais. Ofereci, então, além de conhecimento e informação, os meus serviços profissionais para elaborar o estatuto da entidade, registrá-la legal e juridicamente. Casé, à época, após uma sondagem, me respondeu que não havia sensibilidade, união e recursos para o surgimento de uma associação. Após reduzir a minha remuneração pela metade, me dispus a fazer tudo gratuitamente. Cheguei a ir a Paraty para convocar uma reunião com os produtores. Não houve interesse, não tive sucesso. Lamentei. Anos depois, com as bênçãos de São Benedito, nasceu a APACAP.

 

Hoje, posso afirmar que 8 de maio de 2007 foi um dia muito importante não apenas para o Município de Paraty, para a Agroindústria da Cachaça, para o Estado do Rio de Janeiro, para o País. Nasce como uma data histórica para a nossa Economia, para a Cultura Brasileira.

 

Há 474 anos a cachaça era inventada na Capitania de São Vicente, e, décadas depois, em 1600, Paraty, sesmaria na mesma Capitania, já era o centro de excelência, lugar onde nos seus engenhos se fabricava o melhor “vinho de mel de cana”, a melhor “jiribita da terra”, a melhor aguardente de cana-de-açúcar do mundo. A palavra “cachaça” só foi generalizada na fala do povo próximo a 1800. Porém antes de 1700 a palavra “paraty” já designava não apenas o “vinho de cana”, a “aguardente da terra”. “Paraty” era traduzida como a melhor, a mais pura, a mais nobre aguardente de cana-de-açúcar. Em todo o Século XIX e na primeira metade do Século XX, na maioria das províncias e estados do Brasil, e nos países estrangeiros, mais se falou e se escreveu “paraty” do que “cachaça”, “cana” ou “pinga”. A comprovação disto está no Jornalismo, na Literatura, na Historiografia, nos registros dos cronistas e viajantes de todo o mundo, na nossa Cultura Popular, no nosso Folclore. Até meados do século passado, em muitos rótulos das pingas de Paraty, o uso da palavra “paraty” prevaleceu sobre “cachaça”. Eu possuo a maior e mais completa coleção de rótulos de cachaças de Paraty, identificação que surgiu na década de 1930. Vários desses rótulos não trazem a palavra “cachaça” e sim “paraty” seguida da marca, da fazenda ou engenho de origem, ou do nome do seu fabricante. São mais de quatro séculos de sabedoria e tradição, de ciência e arte, de conhecimento empírico, de tecnologia eficaz e verdadeira, excelência confirmada e aprimorada, a cada dia, pelas universidades e instituições de pesquisa. São mais de quatro séculos de alquimia, de amor, preservação e veneração a uma bebida, símbolo da nacionalidade, que encharca toda a História e a Cultura do Povo Brasileiro.

 

Da riquíssima sinonímia da palavra “cachaça”, acervo de mais de mil termos, a palavra “paraty” é a que possui maior lastro cultural e histórico, nacional e internacionalmente. Hoje, em 2007, a maioria dos habitantes de qualquer país do mundo com mais de sessenta anos de idade pode não conhecer a palavra “cachaça”, mas sabe, ou já ouviu dizer, que “paraty” significa um primoroso destilado brasileiro feito da cana-de-açúcar, de qualidade superior, de Excelência Sensorial superior.

 

Reconhecimento e proteção

 

A Indicação Geográfica – IG – constitui um instituto jurídico, previsto na nossa Lei da Propriedade Industrial, de 1996, que visa reconhecer e proteger o nome geográfico de pais, região ou localidade, que identifique algum produto ou serviço típico. Na Europa, existem mais de 3 mil produtos agropecuários com certificados de IG. No Brasil, a certificação é recente. A IG resulta na fidelização do consumidor, que saberá que, sob a etiqueta da Indicação Geográfica, vai encontrar um produto de qualidade e com características locais, peculiares a um determinado lugar. A Indicação Geográfica também favorece a melhoria da comercialização, facilitando o acesso aos mercados através da propriedade coletiva. O produto com Indicação Geográfica ganha maior competitividade nos mercados interno e internacional, uma vez que o certificado projeta imagem associada às virtudes e à tipificação, promovendo uma garantia institucional da qualidade, reputação e identidade.

 

A IG realiza-se através de um registro junto ao INPI, que expede um Certificado específico. Entre nós, existem dois tipos de Indicação Geográfica: a Indicação de Procedência e a Denominação de Origem. São dois registros diversos, com implicações e consequências jurídicas e econômicas diferentes. A Indicação de Procedência traduz-se no “nome geográfico de país, cidade, região demarcada ou localidade de seu território, que se tenha tornado conhecido como centro de extração, produção ou fabricação de determinado produto ou de prestação de determinado serviço”. Na embalagem do produto estará gravado “Indicação de Procedência”. Já a Denominação de Origem se dá quando o nome geográfico de país, cidade, região demarcada ou localidade de seu território, designa produto ou serviço cujas qualidades ou características se devam exclusiva ou essencialmente ao meio geográfico, incluídos “fatores naturais e humanos”. A embalagem do produto trará a inscrição “Denominação de Origem”.

 

Note-se que um produto que goze da Indicação de Procedência terá o direito exclusivo de utilizar o nome geográfico onde é fabricado. Porém, um produto que detenha a Denominação de Origem não anunciará, com exclusividade, apenas o nome geográfico. O nome geográfico denominará o produto, como ocorre, por exemplo, com dois produtos da França: o brandy fabricado na região de Cognac se denomina “cognac”, e o vinho branco espumante fabricado na região de Champagne se denomina champagne. O brandy fabricado na região de Cognac ostenta qualidades e características únicas, peculiares, diferenciadas dos outros brandies fabricados no mundo, características estas devidas exclusiva e essencialmente àquela região, incluídos os fatores naturais e humanos. Esses fatores são o solo e o clima, o conhecimento, a tecnologia, o modo de fazer peculiar, a sabedoria pertinente, as práticas, a tradição, a cultura que gravita em torno da atividade e do produto. Na Denominação de Origem não basta que o nome geográfico seja famoso, que o lugar tenha se tornado conhecido como centro de produção de determinado produto. Aliado aos “fatores naturais e humanos”, outro elemento é indispensável: a qualidade. Mas não é apenas a “qualidade legal”, ou seja, que o produto cumpra as especificações e exigências da lei. Se for bebida, por exemplo, não basta que apenas seja resultado de um determinado processo de produção, possua uma determinada composição química, tenha um determinado envasamento, que a sua ingestão normal não seja prejudicial, nociva ou letal à saúde e à vida humana. Esta qualidade não basta. Isto é como o político ser honesto. Não passa de uma obrigação. A qualidade que diferencia e denomina, por exemplo, as bebidas cognac e champagne é a qualidade sensorial, a superioridade e excelência na aparência, cor, consistência, textura, aroma, sabor e digestibilidade. Esta Excelência Sensorial é comprovada por bancas sensoriais formadas por degustadores profissionais, por provadores formados e treinados que atestam se aquele brandy feito na região de Cognac é realmente cognac ou se não passa de um simples brandy como tantos outros; se aquele vinho branco espumante feito na região de Champagne é champagne ou não passa de um simples espumante feito em tantos outros lugares do mundo.

 

A Denominação de Origem

 

O Certificado que a Cachaça de Paraty recebeu do INPI foi o de Indicação de Procedência, isto é, o direito exclusivo de somente as pingas fabricadas no município exibirem em seus rótulos a indicação: Cachaça de Paraty, seguida da expressão “Indicação de Procedência”. Somente as cachaças fabricadas em Paraty poderão usar o nome geográfico “Paraty” em seus rótulos, quando se sabe que várias marcas de cachaça, em diversos Estados, usam o nome “paraty” para denominar cachaça . Mas este direito não é exatamente o mesmo que ocorre com as bebidas cognac e champagne. Qualquer pinga fabricada em Paraty, seja ela de excelência, mediana ou ruim, cumpridas as exigências legais, independente da sua qualidade sensorial, poderá usar em seu rótulo a inscrição “Cachaça de Paraty”, seguida da expressão “Indicação de Procedência”. Trata-se, apenas, de uma Indicação Geográfica, na modalidade Indicação de Procedência. Mesmo havendo “uma estrutura de controle sobre os produtores” de Paraty, para a concessão da Indicação de Procedência, conforme exigiu a lei para a concessão do Certificado, nenhum crivo sensorial, nenhuma banca sensorial de degustadores atestou ou atestará o padrão de Excelência Sensorial das cachaças de Paraty, padrão este cujas marcas de tradição Coqueiro e Corisco são exemplos cabais.

 

O Registro é justíssimo, resultado de uma atividade econômica primacial e emblemática na vida de um dos mais belos sítios da Terra, Paraty, Município Monumento Nacional, dono do mais harmonioso conjunto arquitetônico colonial do País. O Registro vem consagrar mais de quatrocentos anos de história de uma bebida que antes de se chamar “cachaça” foi chamada de “paraty”. Ainda hoje, a Cachaça de Paraty continua única, inigualável, sem similares, sendo feita artesanalmente com os mesmos fundamentos e segredos exclusivos e invioláveis que fazem dela um produto diferenciado na cor, no aroma e no sabor. Há mais de quatro séculos, a bebida denominada “paraty” gera riqueza, arte, beleza, é centro difusor e polarizador de Cultura nas suas mais diversas áreas e expressões.

 

A Indicação de Procedência da Cachaça de Paraty irá distingui-la de outras cachaças, será, mais que uma impressão digital, uma carteira de identidade para o produto, proclamando a sua origem, o lugar onde ela é feita. A Cachaça de Paraty estará protegida das fraudes, irá aumentar o seu valor agregado. A ela está conferido um diferencial de mercado, em função das características e da cultura própria do seu local de origem, preservando-lhe as suas belíssimas particularidades. Irá, também, incentivar novos investimentos, elevando o padrão tecnológico dos engenhos, multiplicando os empregos e favorecendo o turismo.

 

Paraty, mesmo em meados do século XVIII, quando possuía mais de uma centena e meia de alambiques, engenhocas destiladoras de aguardente de cana-de-açúcar, sempre se distinguiu pela qualidade insuperável, jamais pela quantidade, pela grande produção. E Paraty continua, com uma modesta produção de 200 mil litros anuais, a fabricar a melhor cachaça do mundo, cachaça de caráter, primorosa, quimicamente perfeita, de aroma rústico e sedutor, sabor pleno e inigualável. Atualmente, somente quatro empresas estão, legal e juridicamente, autorizadas a fabricar cachaça em Paraty: a Destilaria Engenho d’Água, na Fazenda Cabral, de Eduardo Mello, onde nasce a Coqueiro; a Destilaria Corisco de Paraty Ltda., na localidade do Corisco, de Aníbal Gama, onde é feita a Corisco; a empresa Murycana Indústria de Bebidas Ltda., na Fazenda Bananal; e a empresa Paulo Eduardo G. Miranda ME, no Sítio Pedra Branca, na Ponte Branca. Desses quatro engenhos, apenas dois estão em atividade regular e contínua, isto é, fabricam cachaças atualmente: a Coqueiro e a Corisco. Paraty possui apenas seis marcas de cachaça registradas no Ministério da Agricultura, marcas que não são clandestinas: CoqueiroCoriscoMurycanaParatiana e Labareda.

 

A Indicação Geográfica da Cachaça de Paraty, na modalidade Indicação de Procedência, é o quarto registro conferido pelo INPI a um produto nacional, das dezenas de pedidos feitos a partir do ano de 2000. Os três primeiros foram para: os Vinhos Finos do Vale dos Vinhedos do Rio Grande do Sul, o Café do Cerrado de Minas Gerais e a Carne do Pampa Gaúcho. É, também, o primeiro passo para a concessão futura do Registro de Denominação de Origem para a Cachaça de Paraty. Isto será possível? Creio que sim. Até hoje, o INPI não concedeu nenhum Certificado de Denominação de Origem a qualquer produto nacional. Por enquanto, teremos o direito do uso exclusivo da identificação “Cachaça de Paraty” para as cachaças fabricadas no município. Mas a Cachaça de Paraty já possui todos os requisitos, ou seja, já apresenta, em sua fabricação, todos os “fatores naturais e humanos”, dos quais trata a lei e aos quais me referi, para requerer a Denominação de Origem “Paraty”, que deverá ser usada para a cachaça fabricada em Paraty. Então, com a Denominação de Origem “Paraty”, poderemos ter impressos nos rótulos, se os produtores desejarem, “Paraty Coqueiro” e “Paraty Corisco”, seguidos das expressões “Denominação de Origem” e “Cachaça de Paraty”. Com a Denominação de Origem será reconhecida e protegida uma bebida de características singulares, cujo processo de produção é peculiar, próprio, exclusivo dos produtores de Paraty. Essa sabedoria, essa tecnologia, é um patrimônio cultural imaterial de mais de quatrocentos anos, de valor inestimável, patrimônio herdado, teluricamente, entre gerações, hoje propriedade de algumas famílias paratyenses. Porém, para a expedição do Certificado da Denominação de Origem da Cachaça de Paraty, quando o nome geográfico “Paraty” será identificador da cachaça produzida no município, além daqueles “fatores naturais e humanos”, a questão da qualidade sensorial continuará pendente, pois, infelizmente, não existe lei ou ato normativo prevendo a utilização de banca sensorial, capaz de comprovar a singularidade e Excelência Sensorial de uma bebida, como acontece com as Denominações de Origem “cognac” e “champagne”. O advogado brasileiro Marcos Fabrício W. Gonçalves, mestre em Direito pela Universidade de Lisboa, especialista na matéria, autor de tese única sobre Indicações Geográficas, em fase de publicação, considera importante a alteração ou regulamentação da lei com o objetivo de sanar esta lacuna, criando-se mecanismos, como a banca sensorial, para viabilizar as Denominações de Origem. A teoria e a experiência de outros países indicam que, obtida a Denominação de Origem “Paraty”, ela somente deveria ser exercida com a participação indispensável de uma banca sensorial de degustadores profissionais, de provadores formados e treinados para avaliar se determinada cachaça fabricada em Paraty possui a singularidade e excelência da bebida “Cachaça de Paraty”, segundo a sua tradição, o seu padrão sensorial superior, consagrada há mais de três séculos.

 

Como vimos, nem todo o brandy feito na região de Cognac, na França, recebe a denominação “cognac”. Nem todo o vinho branco espumante fabricado na região de Champagne, na França, é “champagne”. Não bastará que uma cachaça seja fabricada no município de Paraty, para receber o direito do uso exclusivo da Denominação de Origem “Paraty”. As características, segundo o padrão tradicional de qualidade sensorial de cor, aroma e sabor da Cachaça de Paraty, é que concederão, aos produtores de Paraty, o direito do uso exclusivo da expressão “Denominação de Origem”. Interessante notar que os produtores de vinhos do Vale dos Vinhedos, mesmo possuindo apenas a Indicação Geográfica, mantém bancas sensoriais que atestam o padrão de Excelência Sensorial dos seus produtos. Com a futura Denominação Geográfica “Paraty”, todas as cachaças fabricadas no Brasil serão cachaças, mas somente aquela fabricada em Paraty, com um específico padrão e Excelência Sensorial, se chamará “Paraty”. Hoje, se indaga: - O senhor deseja brandy ou cognac? – O senhor vai escolher um espumante ou prefere champagne? Com a Denominação de Origem “Paraty”, o balconista do bar ou o garçom do restaurante perguntará: - O senhor vai beber cachaça ou paraty?

 

Conquista

 

Está de parabéns pela conquista da Indicação de Procedência a APACAP, na pessoa de Eduardo Mello, ex-presidente e atual vice-presidente que liderou o processo que culminou com a Certificação. Considero Eduardinho o melhor alambiqueiro do mundo, o artesão que personaliza “o modo paratyense de fazer cachaça”. Sua família inventa cachaça há trezentos anos. Eduardo Mello sintetiza sabedoria, esmero, trabalho, amor, generosidade, doação, humildade para aprender e ética para não transigir com a ilicitude, com a má qualidade, a falsificação e o lucro fácil. A Cachaça Coqueiro, que ele fabrica, e que considero a melhor do mundo, foi a primeira do Brasil a receber o “Selo de Cachaça de Excelência” do Ministério de Agricultura.

 

A Indicação de Procedência da Cachaça de Paraty não é só uma vitória dos produtores de Paraty, daqueles poucos que mantêm as suas empresas legalizadas, as suas marcas registradas e ativas, as suas atividades de acordo com a lei e sob competente fiscalização federal. Constitui uma vitória de uma admirável e produtiva parceria entre os produtores, o Ministério da Agricultura e o SEBRAE-RJ. Neste sentido, vale registrar a boa administração do Superintendente Federal da Agricultura no Estado do Rio de Janeiro, Pedro Cabral, e de sua competente equipe de técnicos tendo à frente os Doutores Celso Merola, Alfredo Morandini e Sérgio Nicolau. Para Cabral, os produtores de cachaça de Paraty “terão que continuar trabalhando muito para honrar o selo de Indicação de Procedência e aumentar a respeitabilidade dele”. Destaque, ainda, para o dedicado trabalho da responsável pelo Balcão do SEBRAE em Paraty, a Dra. Maria Auxiliadora Silva, incansável lutadora pela organização dos produtores, a eficácia da parceria, o reconhecimento da singularidade e excelência da Cachaça de Paraty, recebendo a brilhante consultoria técnica do Doutor Ricardo Zarattini, da Fundação Bio-Rio. Por fim, louve-se a seriedade e inteligência do INPI que soube interpretar e aplicar a Lei de da Propriedade Industrial.

 

Um brinde à permanente e eterna excelência, à indiscutível superioridade da Cachaça de Paraty, sua história, seu prestígio, sua glória.

 

Saúde! Felicidades a todos!

 

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OS DOIS RANKINGS DE CACHAÇAS
CONSTRUÍDOS POR MARCELO CÂMARA
PARA A REVISTA PLAYBOY,
EDIÇÃO DE ABRIL DE 2007

 

Classificação conforme a Degustação Marcelo Câmara:

a) cachaças maravilhosas, raríssimas e insuperáveis, que você bebe poucas vezes na vida: nota 10; pingas do céu

b) cachaças de excelência sensorial, de qualidade superior, muito poucas, raras: notas de 8 a 9,9; pingas do altar

c) cachaças medianas, com qualidade, apenas bebíveis (existem centenas no mercado, a maioria de MG: de 6 a 7,9; pingas da prateleira

d) cachaças ruins, sem qualidade (existem milhares, a maioria do mercado): de 0 a 5,9; pingas destinadas a certas elites; 

Ou seja

1 ) se a cachaça alcançou a nota máxima, 10 (dez), você bebeu uma cachaça maravilhosa, raríssima, preciosa, sublime, insuperável, divina, um néctar, que se degusta uma ou duas vezes na vida. Uma cachaça do céu.

2) se a cachaça ficou com nota entre 8 e 9, 9, você bebeu uma cachaça de excelência, de qualidade superior, perfeita na estrutura química e de virtudes sensoriais primorosas, deliciosa, saborosíssima, prazerosíssima. Uma cachaça do altar.

3) se a cachaça recebeu nota entre 6 e 7,9, você bebeu uma cachaça com qualidade, mediana, com algumas virtudes, bebível, classificável entre o medíocre e o satisfatório. Uma cachaça da prateleira

4) se a cachaça foi avaliada com nota abaixo de 6, isto é, com nota de 0 a 5,9, você bebeu uma cachaça ruim, sem qualidade, com aroma e sabor desagradáveis, sem virtudes, classificável entre o vomitativo e o sofrível, que vai do péssimo ao não-prazeroso. Uma cachaça das destinada a certas elites brasileiras, que odeiam o nosso povo e desprezam a nossa Cultura. Uma cachaça das elites.


FonteCachaças bebendo e aprendendo - Guia prático de degustação (Mauad).

 

RANKINGS DA CACHAÇA

(situação em março de 2007)

 

Classificação construída a partir da degustação das marcas ativas que provou, que são produzidas e estão no mercado, segundo avaliação crítica do cachaçólogo, pingófilo e degustador MARCELO CÂMARA, primeiro e único degustador profissional de cachaças em atividade no País, criador das normas e critérios sensoriais para a degustação do destilado nacional, autor dos livros Cachaça - Prazer Brasileiro (Mauad, 2004), primeiro livro dirigido ao mercado, ao consumidor real e potencial da bebida, e Cachaças bebendo e aprendendo - Guia prático de degustação (Mauad, 2006), primeiro livro do mundo de degustação de cachaças, a primeira obra a tratar exclusivamente dos aspectos sensoriais da bebida brasileira. 


FORMULÁRIO DO JÚRI DA CACHAÇA (PLAYBOY)

10º lugar 
Cachaça: ........................................................................  Cachaça envelhecida: Cachaça do Barão - Prata, de Leme, SP

9º lugar
Cachaça: ........................................................................  Cachaça envelhecida: Três Quedas, de Santa Tereza, ES

8º lugar
Cachaça: Minha Deusa, de Betim, MG                            Cachaça Envelhecida: Vale Verde, de Betim, MG 

7º lugar
Cachaça: Mato Grande , de Baldim, MG                        Cachaça envelhecida: Biquinha, de Coronel Murta, MG

6º lugar
Cachaça: Pedra Azul, de Domingos Martins, ES         Cachaça envelhecida: SalvaGerais Prata, João Pinheiro, MG

5º lugar
Cachaça: GG, de Rio Bananal, ES                                  Cachaça envelhecida: Samanaú, de Caicó, RN

4º lugar
Cachaça: Aroeirinha, de Porto Firme, MG                   Cachaça envelhecida: Tabaroa, de Bichinho, MG

3º lugar
Cachaça: Samanaú, de Caicó, RN                                Cachaça envelhecida: Velha Aroeira, Porto Firme, MG 

2º lugar
Cachaça: Corisco, de Paraty, RJ                                  Cachaça envelhecida: Corisco, de Paraty, RJ

1º lugar
Cachaça: Coqueiro, de Paraty, RJ                               Cachaça envelhecida: Coqueiro, de Paraty, RJ

Marcelo Câmara

Cachaçólogo, pingófilo e degustador profissional de cachaças.
Autor de Cachaças bebendo e aprendendo – Guia prático de degustação (Mauad)

 

 

Final infeliz
para o diálogo Marcelo Câmara - Playboy

 

Um desfecho funesto, uma covardia” – assim definiu o jornalista, escritor e consultor cultural Marcelo Câmara o seu diálogo com um dos editores da revista Playboy, da Editora Abril, que na sua edição de abril publicou a reportagem Ranking Playboy da Cachaça, considerada pelo cachaçólogo, pingófilo e degustador, “uma matéria desastrosa, farta de equívocos, asneiras e barbaridades”. O editor Jardel Sebba havia prometido publicar, na seção de cartas da edição de maio, devida e corretamente identificados, os dois rankings construídos por Marcelo, a pedido da revista. O editor também solicitou a Marcelo que indicasse quais “os erros (objetivamente) para que possamos dar uma nota corrigindo na próxima edição”.

 

O especialista, atendendo à revista, preparou então um longo texto apontando, direta e explicitamente, todos os tropeços e tombos, um a um, todos os equívocos, asneiras, ficções, mentiras e barbaridades, demolindo, linha a linha, a infausta matéria. Com a alegação insólita e duvidosa, segundo a qual “a edição de maio da revista foi fechada na última terça-feira, logo será impossível incluir esse comentário que você acaba de mandar na seção de cartas” – o trabalho de Marcelo Câmara foi, mais uma vez, como foram os seus rankings, ignorados e descartados. O editor informou que apenas o seu protesto inicial será publicado na seção de cartas “com a nossa devida resposta” (sic) e que os rankings estarão somente no site da revista. Quanto às indicações que Marcelo fez dos erros e asneiras, todas fundamentadas no seu conhecimento técnico e científico, estas foram para a lata de lixo. No ano passado, Marcelo também concedeu entrevista e construiu rankings justificados solicitados pela Playboy, que também não foram publicados, mas apenas colocados no referido site, ao qual só tiveram acesso os seus assinantes da revista.

 

URGENTE

Nota de Marcelo Câmara

aos seus amigos, parceiros e clientes

 

"NADA TENHO A VER COM A IGNORÂNCIA"

 

Minhas amigas,
Meus amigos,

 

Alerto-os quanto à desastrosa matéria publicada na revista Playboy, edição de abril de 2007, intitulada Ranking Playboy da cachaça, onde o meu nome aparece como um dos “treze especialistas” ou “jurados” que opinaram e construíram o famigerado “ranking”.

 

Nada é legível ou digno de apreensão na matéria, nada se aproveita nela, nem uma linha. Trata-se de um amontoado de equívocos e asneiras. A estrutura da matéria é canhestra, as fontes estranhas, o tratamento inadequado, os comentários medonhos e impróprios, as informações erradas, daí o trágico pseudo-ranking e o texto bisonho, tonto, pleno de tolices e de barbaridades, que denigre e prostitui a nossa amada cachaça, que assusta quem conhece e ama a bebida brasileira.

 

No início de março, fui, sim, entrevistado pela revista, por telefone e por e-mail, respondi a um questionário do “jornalista”, fornecendo-lhe dois rankings, um de cachaça e outro de cachaça envelhecida. Ambas as classificações foram construídas com base na minha sabedoria crítica e reconhecida autoridade de cinquenta e um anos de pingofilia e degustação, de minhas vivências e convivências, de realizações no universo da cachaça, e mais de quatro décadas como cachaçólogo que estuda, escreve e publica sobre o tema. A pedido da revista, enviei, também por e-mail, o capítulo A degustação passo a passo, do meu último livro Cachaças bebendo e aprendendo (Mauad), lançado em dezembro de 2006, o primeiro do mundo de degustação de cachaças. Nem uma só palavra do que passei ou disse à revista foi publicada, ao menos considerada. E mais, fui apresentado aos leitores encabeçando uma lista de “jurados” como “autor do livro Cachaça – Prazer Brasileiro”. Ora, o livro que se vinculava, que se colocava jornalisticamente adequado e oportuno à consulta para a elaboração da matéria era Cachaças bebendo e aprendendo, que trata dos elementos sensoriais da cachaça, revelados na arte e técnica de uma degustação, e não o livro citado, uma obra de 2004, também de vanguarda, é verdade, mas genérica quando a finalidade é julgar a qualidade sensorial das cachaças fabricadas no País.

 

Por que tanta tolice impressa em papel couché, em policromia?

 

Duas são as causas: 

1º) Dos ditos “treze especialistas” – além de mim, criador das normas e critérios sensoriais de degustação da bebida e o primeiro e único degustador profissional de cachaças em atividade no País – identifico, na lista, apenas dois bebedores habituais de cachaça. Isto não significa afirmar que eles estejam aptos a se manifestaram sobre aspectos sensoriais da bebida. Os outros dez “especialistas” são químicos (que fazem análise química, em laboratório, e não sensorial de cachaças), comerciantes, prestadores de serviço do setor, curiosos, neófitos, animadores (ou desanimadores) da cachaça, alguns sem ofício e sem emprego, e, ainda, profissionais e amadores que habitam os territórios do vinho, da cerveja, do uísque e de outros destilados. São pessoas que não têm conhecimento, vivência ou experiência alguma no universo cultural, socioantropológico e econômico, da Cachaça, muito menos autoridade e respeitabilidade comprovada para avaliar sensorialmente cachaças, objeto da matéria.

E, no Brasil, centenas existem habilitados para o mister.

 

2º) a outra causa do besteirol deve-se ao despreparo e à irresponsabilidade do escrevinhador da matéria.

Sorte minha não ver meu pensamento sobre a cachaça, minha opinião responsável, minhas críticas profissionais misturadas a tanta bobagem e mal editadas na revista. Estaria muito mais comprometido com a insensatez e a patranha.

 

Mas, quando sou incluído numa lista de amadores, entusiastas e conhecedores de ocasião, quero deixar bem dito e bem claro que nada tenho a ver com o tal ranking, que mistura duas bebidas diferentes, cachaça nova e cachaça envelhecida, e, na sua quase totalidade, enobrece pingas medianas e ruins. Também não assino ou ratifico uma só palavra do texto do “repórter”, nem concordo com as informações errôneas, as risíveis orientações e os ridículos comentários dos denominados “especialistas”.

 

Marcelo Câmara

Rio de Janeiro, 11 de abril de 2007.

 

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Fevereiro de 2007

 

OS OITENTA ANOS DE NEWTON MENDONÇA 
E A MORTE DE NORMA

 

Aos 81 anos, faleceu, na noite de 26 de fevereiro de 2007, vítima de infarto, Norma Ferreira de Mendonça, única irmã do genial músico e compositor de vanguarda Newton Mendonça. Carioca, nascida a 22.1.1926, era a única filha do tenente do Exército Miguel Ferreira de Mendonça Júnior e Celeste Carvalho de Mendonça. Newton nascera no ano seguinte, a 14 de fevereiro, e partiu a 22 de novembro de 1960, aos 33 anos, no terceiro infarto. O irmão caçula, Wilson, nasceu em 1928, e morreu precocemente logo depois de Newton, também de infarto. Manicure, solteira, moradora de Ipanema, apaixonada por Newton, dedicou grande parte da sua vida à defesa da memória e da divulgação da obra do irmão, artista sempre ignorado, reduzido, deformado ou marginalizado por uma "história oficial da Bossa Nova", segundo o jornalista Marcelo Câmara, único biógrafo de Newton. Voluntariosa, de temperamento difícil, a sua intransigência em nada ceder ou tolerar quando a causa era a música do irmão causou-lhe muitos conflitos, desavenças e dor durante toda a vida. Norma foi a primeira e essencial fonte do livro Caminhos cruzados - a vida e a música de Newton Mendonça (Mauad, 2001), de Marcelo Câmara, onde ela é descrita como uma personagem severa, implacável, truculenta, obcecada em fazer justiça ao nome e à arte de Newton, a quem ela definia como "o homem mais importante da minha vida". Norma morreu no Hospital Central do Exército e o sepultamento ocorreu na manhã de quinta-feira, 1º de março, no Cemitério São João Batista.

 

Newton Mendonça foi o criador de Desafinado, Samba de uma nota só, Meditação, Discussão, Foi a noite, Caminhos cruzados, entre outros clássicos da MPB, hinos e matrizes da Bossa Nova, em parceria com Tom Jobim, de quem foi o primeiro e fundamental parceiro, com quem formou a parceria New-Tom, a dupla mais importante do movimento. Maior amigo de Tom, Newton, também de formação musical erudita, porém órfão, pobre e introvertido, foi quem o conduziu para a Música Popular e com quem começou a compor por volta de 1952. Newton Mendonça se profissionalizou como pianista da noite carioca antes de Tom, em 1950; teve música sua gravada antes de Tom, em 1952; e morreu antes de Tom, em 1960, trinta e quatro anos antes de Tom. Os aquarianos Newton Mendonça e Tom Jobim se conheceram em 1942, quando ambos tinham com quinze anos, em Ipanema, onde moravam.

 

No dia 14 de fevereiro de 2007 completaram-se oitenta anos do nascimento de Newton Mendonça. Nenhum registro da mídia, nenhuma lembrança ou celebração na Música Brasileira ou por parte dos poderes públicos. Ao contrário, no aniversário de oitenta anos de Tom Jobim, irmão xifópago de Newton, ocorrido dias antes, a 25 de janeiro de 2007, o País todo, com muita justiça, reverenciou a memória de Tom, com programas especiais no rádio e tv, matérias e cadernos especiais nos jornais. O silêncio, mais esta omissão criminosa em relação a Newton Mendonça abalou muito a saúde já fragilizada de Norma, que como o pai e os dois irmãos, falece de uma cardiopatia hereditária, familiar, agravada por problemas pulmonares e anemia. O comportamento dos músicos e compositores e a hipocrisia da mídia em relação a Newton Mendonça não surpreendem Marcelo Câmara. Para ele, “o silêncio, a omissão, a covardia, o cinismo é normal, uma vergonhosa e infame tradição. Lembrar Newton, divulgar a sua obra, contraria interesses vis, atinge mesmices e invencionices, desmonta ficções e mentiras cristalizadas de uma história oficial da Bossa Nova, que quer vê-lo bem morto e esquecido, ignorado por todos do seu real e verdadeiro papel, revolucionário, transgressor, na Música Popular Brasileira”. Além do livro sobre Newton lançado em 2001, Marcelo Câmara produziu o CD Cris Delanno canta Newton Mendonça (Ilha Verde/Nikita) em 2002, com obras solitárias e inéditas do compositor e músicas raras, desconhecidas, da dupla New-Tom. Passados quarenta e sete anos da morte de Newton, nunca foi montado um show com as suas músicas. Marcelo Câmara tentou levar para o palco um espetáculo escrito por ele e que iria dirigir. Mas não conseguiu: “Durante anos, busquei apoio público e privado para viabilizar o projeto, e desisti. Nenhuma inteligência ou sensibilidade, nenhuma adesão, nenhum apoio. Não há interesse em conhecer Newton Mendonça, a sua pequena e ousada obra musical. Mudaria quase tudo o que se tem escrito sobre Bossa Nova. Isto é muito perigoso.”

 

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